domingo, 30 de janeiro de 2022

São Manuel Bueno, Mártir - Miguel de Unamuno

Mais uma nivola (estilo próprio) do autor basco espanhol Miguel de Unamuno, junto de outros nomes de peso como Azorín, Valle Inclán, Maeztu, Pio Baroja e o próprio Ortega y Gasset, retrata a alma de uma Espanha dividida entre o progressismo modernizador e o tradicionalismo católico, metaforizando a história de um padre, São Manuel, em um pueblo da meseta, na região castelhana, onde mantém coesa e estimula a fé a todos os aldeãos, porém ele mesmo esvaído de sentido à vida, perdendo a fé, se vê em um dilema de continuar com o ofício e o drama existencial, aos olhos de Angelina, quem narra a história. Aqui faço um comentário da grande obra e meus adendos históricos e sociológicos.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Sleepers - A Vingança Adormecida

 Por: David Vega



Uma sociedade de muros, que aqueles do lado de fora especulam como seria o lado interno, bem como os “ilhados” uma vez dentro, se esquecem da vida lá fora. Se a lógica do condomínio produz isso aos que se isolam, aqueles confinados em reformatórios, presídios e sistemas corretivos de detenção do Estado, perdem não só a capacidade do convívio em sociedade, bem como uma característica de cooperação mínima necessária à vida em comunidade, produzindo o contrário ao reeducando, ao invés de recuperá-lo.

Assisti ao clássico dos anos 1990, “Sleepers – A Vingança Adormecida (1996)”, baseado na obra homônima de Lorenzo Carcaterra (o garoto protagonista do filme). O filme conta com um elenco de estrelas, Dustin Hoffman, Brad Pitt, Robert De Niro, Kevin Bacon e na ala juvenil, o garoto prodígio Brad Renfro, que foi icônico aos que cresceram nos 90, sobretudo com seus filmes tais quais Tom e Huck, A Cura, O Cliente, O Aprendiz e tantos outros que fizeram dele mais um “menino problemático” de Hollywood, igual inúmeros desde James Dean; quis o destino que o garoto tivesse o fim semelhante ao de River Phoenix, ao ser encontrado morto por overdose de heroína em seu apartamento em 2008. Nesse ponto ao menos o Macaulay Culkin ainda está vivo! Bem, o filme retrata uma geração perdida e sem perspectivas de pré-adolescentes que tem a infância roubada após uma detenção.

A história é ambientada no bairro de Hell´s Kitchen, periferia de Nova Iorque dos anos 1966-67 composta em sua maioria de porto-riquenhos, italianos carcamanos, irlandeses pobres e negros. Quatro amigos inseparáveis vivem o cotidiano de um ambiente sem perspectiva, do qual as figuras mais ilustres pertencem à máfia. Como nas palavras do personagem Gordo latino: “Você conhece esse bairro, é dotado de extorsão e trambique!” - You never cheat a cheater (você nunca trapaceia um trapaceiro). O ídolo de todos ali seria Kenny Benny, um homem conhecido por ser justiceiro, que vingou todos aqueles que o “passaram para trás” desde pouca idade, fazendo valer a lei de Talião em um lócus onde a justiça se faz através da vingança privada, na faca ou no cano do revólver, sem existir um Estado de Direito que regula as relações dos moradores, substituído pelo poder da igreja católica local e do padre idealista interpretado por Robert De Niro.

Uma passagem que me chamou a atenção, é quando o narrador, o próprio Carcaterra, diz que acompanhava na TV (e poucos tinham aparelho de TV no bairro) os protestos dos jovens ricos da classe alta querendo mudar o mundo; feministas exigindo igualdade e mostrando os seios, enquanto nunca pisaram na periferia e lá, suas mães apanhavam dos maridos. Pacifistas protestavam contra a guerra do Vietnã e ele via muitos retornarem em caixões com a bandeira americana. Ou liberais defendendo a legalização das drogas, mas no bairro de Hell´s Kitchen, um intruso porto-riquenho se mudou e começou a vender heroína, até que o filho de 12 anos de um italiano mafioso morreu de overdose e no dia seguinte, o traficante amanheceu enforcado em um poste de luz para dar o exemplo aos demais moradores. Nas palavras do narrador: “Para mim as mudanças que os almofadinhas diziam defender na sociedade pouco importavam, pareciam viver em outro país!”.

Os habitantes moravam em apartamentos apertados, de tijolos, muita gente compartilhando um mesmo espaço trazia tensões diversas. Mas é verdade que a molecada também se divertia, tomando banho nos hidrantes das ruas e aprontando como todo garoto faz. Talvez fossem mais livres nesse sentido do que os meninos dos bairros ricos. As cenas iniciais dos quatro amigos lembrou-me muito a minha gangue de camaradas da infância quando cresci no interior. Na época que se brincava na rua até tarde, as descobertas do amor, depois que passam a reparar nas meninas de vestidinho e um encantamento do mundo que infelizmente logo desapareceria, no caso dos meninos do filme, de uma forma muito trágica!

De fato, a vida se mostra difícil desde antes de sua detenção. Há a cena do garoto espancado pelo namorado da mãe no hospital, da menina que vai ao confessionário dizer ao padre que está grávida e por ter tido vários parceiros não sabe quem é o pai e da violência moral e física que sofre a mãe de Carcaterra pelo seu pai, um imigrante italiano que mal fala inglês. A escola é um local apenas para se cumprir tabela, pouco estão ligando para o conteúdo das aulas, pois para que estudar se você pode trabalhar para o grande Benny, ganhar uma pistola e enriquecer em uma semana o que um trabalhador honesto leva meses para conseguir?

            Tudo viria mudar quando os quatro amigos resolvem fazer uma traquinagem contra um vendedor de cachorro-quente. Após roubarem seu carrinho, na perseguição, deixam o carrinho rolar escada abaixo em uma estação de metrô e atingem a um pedestre, provocando praticamente a sua morte. Chocados, pois não era para acabar assim, os quatro são julgados e condenados, sentenciados por “comportamento violento” a cumprir pena em um reformatório. Lembrei-me de quando era criança que sempre nos ameaçavam depois de traquinagens com a temida FEBEM, hoje chamada “Fundação Casa”.

O filme a partir de então toma um rumo totalmente diferente, muito mais sombrio do que os problemas das famílias estruturadas do gueto de Nova Iorque. Principalmente quando são submetidos à vigilância do líder dos guardas do “presídio” reformatório de Wilkinson, o temível Nokes (Kevin Bacon). A forma com que retratam os maus tratos e as brigas entre os internos lembra muito o filme brasileiro “Pixote – A Lei do Mais Fraco”, que consagrou o saudoso cineasta Hector Babenco, do qual o personagem de mesmo nome interpretado por Fernando Ramos da Silva passa pelos abusos e violências de uma sociedade que jamais se importou com o menor abandonado, sendo que a vida imita a arte, quando o ator, que veio da pobreza, sem conseguir papéis na TV depois do filme, adentrou à vida do crime e veio a falecer a tiros em um assalto, ganhando uma continuação o filme anos depois contando a história de Fernando (que era da região de Diadema na grande São Paulo).

A situação dos quatro amigos se torna ainda mais trágica quando passam a ser abusados sexualmente pelos guardas, uma violência inimaginável a qualquer pessoa, pior a uma criança, nesse momento do filme senti um embrulho no estômago que me impediu até de continuar comendo a pipoca que me acompanhava. Embora não mostre o ato explícito, os gritos das crianças e o jogo de câmeras passando a menção ao abuso é de deixar qualquer um revoltado! E nesse momento, a gente fica torcendo para que os violadores sofram a punição pela lógica “olho por olho, dente por dente”, pois é como se a justiça legalista não fosse o suficiente, tendemos a dar razão à justiça com as próprias mãos, à vingança privada, ao imaginar que poderia ser um filho seu, que seja um desconhecido! É a sensação que fica ao espectador.

O tratamento de Nokes e dos guardas os deixam mil vezes pior do que quando ali entraram. Mostra que eram apenas garotos travessos que pregaram uma peça levando a um acidente não proposital, e o sistema dos “reeducandos” os fez revoltados, pois roubaram-lhes a infância, pelos estupros que sofreram constantemente e a remoção de qualquer dignidade, esta, que começa com nosso próprio corpo.

A segunda metade do filme mostra os garotos já crescidos fora do sistema prisional, dois deles adentraram ao mundo do crime e os outros dois trabalham como advogados. Já dei spoilers demais, enfim, o título do filme já sugere “vingança”, trabalhando a ideia de revanchismo pessoal com a de se punir os violadores através da justiça legalista. Porém, adianto que em um local como Hell´s Kitchen, a justiça também tem seus pormenores e intervenções, pois não só advogados e polícias, mas os juízes também vem da comunidade, esta, que para fazer valer a causa dos garotos que ali cresceram, é capaz de usar a interpretação da lei para uma vingança que a nós, espectadores, produz um sentimento de “dar o troco” aos monstros violadores de menores do sistema prisional.

Também nos faz lembrar de relance de outro filme clássico sobre prisões, “Um Sonho de Liberdade” (Shawshank Redemption), mas o que choca mais é por se tratar de crianças, e assim como na película estrelada por Tim Robbins e Morgan Freeman, é mencionada a obra clássica da literatura “O Conde de Monte Cristo” de Alexandre Dumas, que aborda o tratamento desumano de um prisioneiro, porém depois a sua doce vingança. No Brasil principalmente, existem diversos “Wilkinson”, onde menores que deveriam estar submetidos a um tratamento de reintegração ao convívio são desconstruídos negativamente de uma forma que aprendem o ofício do crime, se antes não eram como tais, passam a se tornar profissionais, o sistema é que retroalimenta os grupos extraoficiais e o poder paralelo. Tendo para além dos muros eletrificados, uma escola onde se ensina mais o que não se deve fazer do que o contrário, em um país que o valor da vida é menor do que os bens protegidos com seguranças armados de algum magnata, fazendo valer cada vez mais a lógica dos muros, seja no presídio, ou nos condomínios daqueles que se isolam do mar de miséria.

domingo, 23 de janeiro de 2022

Munique - No Limite da Guerra (2021)

Por: David Vega


Eu sempre fui um grande admirador de ficções ambientadas em épocas que misturam fatos verídicos da História. De certa forma tentei, modestamente, fazer o mesmo na minha trilogia de aventura “As Aventuras de Donoso Bueno (2022)”. Além de gostar de ler relatos, pois a História também se faz de experiências individuais e biografias, a genialidade daqueles que constroem um enredo envolvendo figuras e eventos que já conhecemos, faz da obra uma utilidade dupla; a intersecção do entretenimento com o didático.

Pois bem, ontem assisti a um filme que poderia se enquadrar em tal característica. Produção da Netflix, “Munich - The Edge of War (2021)” – (Munique – No Limite da Guerra), baseado do livro “Munique” de Robert Harris, tem uma trama de um trio de amigos ainda em 1932 que cursavam juntos suas carreiras na Universidade de Oxford, um dos rapazes é alemão, namorado de uma moça também alemã. Passado os anos, os três se separaram devido a questões políticas, o jovem inglês Hugh Legat é contra o emergente regime de Hitler, enquanto Paul Von Hartmann defende cegamente o líder que segundo ele teria devolvido o orgulho aos alemães. Hartmann não é um nazista de fato, é apenas um cidadão ludibriado e contagiado pela onda populista de seu país, ele acredita que o regime embora seja hostil aos judeus, não perseguirá aquela comunidade quando chegar ao poder, é um jovem encantado com as promessas nacionalistas, idealista, que não consegue compreender o perigo eminente de uma população quase que em sua totalidade hipnotizada pelos discursos de um Führer (líder) salvador.

Anos depois, após o trio de amigos se dissipar, Hugh Legat é secretário do então primeiro ministro britânico Neville Chamberlain (Jeremy Irons) que aparece no filme como um ancião cansado e metódico, um pacifista capaz de qualquer coisa para se evitar uma nova guerra mundial. E de fato a História provou que Chamberlain, ao contrário de Churchill, fez o possível se usando da diplomacia para evitar o conflito, acontece que chega ser quase ingênuo, se tratando de tentar negociar com ditadores com planos expansionistas, que não enxergam no ordenamento legal ou na atividade política tradicional o meio para se atingir os fins; são beligerantes e conquistadores operados pela lógica da guerra total.

Hartmann ao ver as medidas do regime nazista na prática após sua chegada ao poder, abandona a esperança no novo regime e passa a ser um espião que trabalha junto com outros subversivos que pretendem derrubar Hitler. Outra vez a ingenuidade do idealista se mostra como um véu que distorce a realidade, ele tem a esperança de que a Wehrmacht, caso uma guerra se avizinhe, não embarque na irresponsável empreitada, justo as forças armadas alemãs que tinha oficiais prussianos que nunca engoliram a derrota na Grande Guerra, chamando o Novembro de 1918 de traição, e viam em Hitler a oportunidade de revanchismo. O filme mostra como aqueles dotados de um otimismo cego não conseguem fazer uma leitura da realidade, quando este sujeito pensa que o que seu coração gostaria tem uma correspondência com o real, mesmo vendo que a experiência e averiguação o mostra o contrário: ele tem o que a caixa de pandora nos legou e em alguns casos pode ser a coisa mais perigosa; a esperança! Arriscando-se em uma empreitada que representa mais a sua vontade pessoal do que a real pretensão do povo alemão naquele momento.

Legat é mencionado pelo seu colega alemão e isso chega ao conhecimento do MI6 (serviço secreto britânico) que o contrata para ir como tradutor de Chamberlain no famoso encontro (A Conferência de Munique) que reuniu o primeiro ministro britânico, o próprio Führer, o Duce (Mussolini) e o líder francês Daladier (sucessor de Léon Blum). É aí que a ficção entra contando os bastidores fantasiosos de um evento real. Os dois amigos teriam um documento que provaria as reais intenções de Hitler para a Europa, que iria muito além de apenas anexar o Sudetos na região da Tchecoslováquia, mas conquistar todo o continente! O regime de Hitler reivindicava o que ele chamava de “espaço vital”, as antigas regiões de populações de ascendência alemã que teriam se perdido do Sacro Império Romano Germânico, o nacionalismo racial dos nazistas defendia a recuperação desses territórios, e isso é mencionado inclusive no Mein Kampf escrito ainda nos anos 1920. Em 1938 ocorreu o Anschluss, quando anexaram a Áustria, depois se expandiram para a região tcheca, no episódio que envolve a história do filme. A passividade Chamberlain beira quase a traição em uma época que a diplomacia não tem mais funcionalidade e a única solução seria a guerra para impedir o avanço incessante de um déspota megalomaníaco. Tal episódio do encontro entre os líderes, sobretudo do acordo firmado entre Chamberlain e Hitler, e a cena famosa do primeiro ministro britânico saindo do avião e sendo recebido por uma multidão que mais parecia ter ganhado uma guerra do que a evitado, hoje, é considerada vergonhosa para os britânicos.

Enfim, o enredo mostra um pouco de suspense, com os dois espiões possivelmente perseguidos pela SS e Gestapo, o encontro dos líderes, e o cenário de uma Alemanha militarizada; a todo momento no filme mostra a população uniformizada nas ruas de Munique, contrastando com as cenas de uma Londres mais pródiga, moderna e diversa. O jogo de cena não é por acaso também, tem vários ângulos propositais, como quando a comitiva volta à Inglaterra e decepcionado, Legat vê o famoso discurso de Chamberlain, olhando para os céus, dando a alusão de que um ano depois do acordo, quando Hitler o desrespeitou e invadiu a Polônia, iniciando a Segunda Guerra Mundial, a Luftwaffe (Força Aérea Alemã) teve investidas de ataques a Londres, barrados pelo heroísmo da RAF (Força Real Aérea Britânica).

Embora não seja o foco principal, a perseguição aos judeus é retratada de uma forma sutil, mas o que chama a atenção no filme é uma lição que a História nos deu, “dê a César o que é de César”, ou seja, trate igual quem merece um tratamento igual, não adianta ser pacifista demais e se usar da diplomacia com líderes que operam por outra lógica fora do campo democrático. Chamberlain renunciou e veio a falecer pouco tempo depois do acordo, sendo sucedido por Winston Churchill, o conservador que tomou as rédeas e fez o contrário do que seu predecessor defendia, declarando guerra, naquele discurso famoso da BBC “Nós devemos enfrenta-los nos mares, nos ares etc” (que virou a música Aces High da banda Iron Maiden), atitude que mesmo custando milhares de vidas, salvou não só a Europa, mas o mundo da ameaça nazista, provando que quando o momento exige, são necessárias atitudes, e não palavras.



quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

Errementari – O Ferreiro e o Diabo

 Por: David Vega



Todo país cristão, sobretudo de tradição católica, tem a figura dualista de santo e demônio muito enraizada em sua cultura. Veja o nosso “O Auto da Compadecida” de Ariano Suassuna e tantas lendas populares, como aquelas caipiras de onde cresci no interior paulista, em que os matutos juravam um suposto encontro com o belzebu e sentido o cheiro de enxofre. Pois bem, o comentário que farei hoje é sobre um filme da santa terrinha, muito incomum, filme basco e falado na língua vascongada, dando uma identidade à lenda do qual ele se baseia, justamente daquela região da Espanha que embora é marcada por um independentismo, produziu os maiores intelectuais nacionalistas do país: “Errementari – O Ferreiro e o Diabo”, produção de 2017.

A terra de Unamuno e de Maeztu, bem como dos antepassados do nosso patrono Anchieta, sempre foi marcada pelo folclore registrado por outra grande figura basca, Pio Baroja, escritor da geração de 1898. Todos conseguem se lembrar de Garcia Lorca enquanto folclorista espanhol, mas sua produção diz respeito mais à Andaluzia, quanto à cultura basca, foi Pio Baroja que escreveu inúmeras obras registrando as lendas locais. Eu já li um livro dele sobre bruxaria (La Dama de Urtubi), e os espanhóis adoram falar de “las brujas” (yo no creo em brujas, pero que las hay, las hay – diz o dito popular) em um país que foi marcado pelo tribunal da inquisição no passado, as anedotas populares giram sempre em torno de demônios e blasfêmias que eram apontadas pela igreja católica.

A película é dirigida por Paul Urkijo Alijo e retrata a paisagem verde da Euskadi (País Vasco) que contrasta com a terra seca de uma Espanha quase que desértica e agrícola. O filme conta a história de um oficial do governo que é enviado a um pueblo (vilarejo) para investigar sobre um ferramenteiro que é suspeito de guardar um ouro da época das guerras carlistas. A lenda diz que este ferreiro chegou a enganar o diabo e era temido até pelo capiroto. A estética do filme lembra muito outro de fantasia que foi muito famoso anos atrás, “O Labirinto do Fauno” (2006) do aclamado Guillermo del Toro.

Ambientado durante e após a primeira guerra carlista (1833-1840), o filme tem leves toques históricos. O carlismo foi um movimento tradicionalista que se destacou sobretudo na região de Navarra e do próprio País Basco que não reconhecia a linhagem sucessória da rainha Isabel. O nome deriva do seu apoio à casa dos Habsburgos dos Carlos, segundo eles, a real casa monárquica da Espanha, que sofreu reformas liberais sobretudo desde a invasão de Napoleão após 1808. A guerra civil carlista se deu entre os tradicionalistas com suas boinas icônicas defensores do absolutismo, cujo lema era “Deus, pátria e rei” contra um exército constitucional que defendia reformas liberais que inclusive promoviam medidas secularistas, o que desagradava a igreja. No filme há a figura do padre da aldeia, que em um sermão ataca o novo governo constitucional na época encabeçando um movimento de oposição à igreja importando ideias liberais e apoiados pela Inglaterra, França e Portugal. Um dos soldados carlistas, faz um pacto com o diabo, e daí começa toda a trama.

É metafórica essa associação ao diabo, em uma época que a modernização representava o mal para uma igreja que visava atacar os parlamentaristas liberais, os protestantes, ateus e posteriormente, os do movimento de Riego, que chegou a proclamar a república (embora teve uma experiência breve, com os monarquistas restaurando a casa real depois). Os carlistas praticamente desapareceram depois da Guerra Civil Espanhola (1936-1939) diluídos nas facções que apoiavam o regime franquista. O ferreiro, que em basco é Errementari, se torna um homem temido e isolado na aldeia, sua figura é relacionada ao próprio demônio, mas uma menina órfã da aldeia ousa desafiar os boatos populares e se aproxima dele. Bem, não vou contar mais, seria spoiler. Vale a pena conferir.

Independente de algumas analogias à política, que eu não consigo deixar de fazer, o filme é um ótimo entretenimento, lembra muito inclusive a nossa cultura tradicional, com fantasias que parecem do carnaval, aqueles diabos vermelhos, com tridente e de rabo que via nos desfiles de rua da cidade que cresci no interior, a ideia do diabo lançada por Dante Alighieri na literatura e reproduzimos até hoje. Embora ambientado no século XIX, o filme tem uma aura medieval, e o vilarejo deles com as casas de pedra me recorda muito o pueblo onde nasceu meu pai, em Leon, que não é basco, mas tem elementos da cultura da Cantábrica na região castelhana do noroeste da Espanha.

Essa lenda basca foi registrada pelo antropólogo José Miguel de Barandiaran, que também era sacerdote. Usa elementos da cultura popular como os garbanzos (grão de bico) igual ao feijão na brasileira e o sino, objeto típico da igreja. A produção é além de espanhola, francesa, que tem uma parte de seu território reivindicado pelos bascos também, mostrando ao mundo o particularismo de uma cultura pouco conhecida, cuja identidade forte não precisa se dissociar do restante da Espanha e de toda Ibéria, aliás, uma península em que sempre vigorou a unidade na diversidade, do qual as lendas tem uma simbiose, inclusive no folclore transplantado às Américas que herdamos.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

A Sombra de Stalin (Mr. Jones)

 Por: David Vega

Recomendação de filme: OBS: Contém Spoiler no texto.



O problema do idealista é que ele através da lente viciada que vê o mundo, enxerga só o que quer ver, mesmo se o fato desmente a sua premissa anterior, após a realidade empírica mostrar o contrário, e quando temos veículos que permitem suas versões dos “fatos” que visam confirmar dogmaticamente negando a verdade, ou pior, instituições que promovem isso, falsear a História sempre será apenas uma “outra versão”, mesmo quando é incansável o relato de milhões e suas trágicas vivências sob algum regime totalitário.

Ora, hoje ninguém ousa questionar do holocausto, por mais que historiadores mal intencionados tentem desconstruir o que os portões de Auschwitz nos lembram, mas a questão não se aplica quando falamos da URSS. Muitos motivos talvez estejam por detrás da má vontade ou simplesmente negligência dos órgãos educacionais e acadêmicos em reconhecer demais genocídios “quando não interessam”. Colocar a culpa na guarda pretoriana da SS matando em nome de uma raça superior é intencionalmente mais convincente do que o mesmo feito pelas botas dos comissários vermelhos sob a justificativa de uma sociedade igualitária e de um futuro feliz, uma perfeição inexistente, mas que ainda cativa muitos, inclusive grandes intelectuais, pelo pretexto da remoção das injustiças humanas. Se mesmo após a revolução científica ainda existem pessoas com a necessidade de crer em algo para além do  mundo terreno, no campo político os missionários de plantão precisam depositar as esperanças em manifestos e dogmas que proporcionam um alívio de consciência igual ao fiel que se crê com a alma salva por seguir os passos do Senhor.

Começo o texto relatando isto, pois é o que sempre me pareceu ao ver grandes intelectuais jogarem tudo ralo abaixo quando se comportam feito crianças mimadas que acreditam nos heróis com super poderes fantásticos, alguns realmente assim o fazem por ingenuidade, outros por mau caratismo mesmo. Assisti ontem a um filme que explicita muito bem essa introdução. “Mr. Jones” ou “A Sombra de Stalin”, filme de 2019, produção europeia, narra a história verídica de Gareth Jones, um jornalista galês (daí faz jus ao nome) que foi quem denunciou os crimes stalinistas enquanto o mundo ainda era seduzido pela promessa do paraíso utópico da União Soviética, sobretudo quando tais ideias começam a ganhar muitos adeptos após a Crise de 1929.

O filme começa com um escritor em sua fazenda fazendo uma metáfora do que na distante Rússia aconteceu comparando com animais, a cena inicial é de alguns porcos comendo lavagem. Não preciso nem dizer quem é este suposto escritor, não é? Sim! Ele mesmo! Eric Blair, mais conhecido como George Orwell. Ele narra seu mais famoso livro, Animal Farm (A Revolução dos Bichos) em paralelo à trajetória de Jones. O jovem jornalista está em uma mesa da edição de seu jornal quando é ridicularizado pelos gordos, grisalhos e velhos envoltos em uma fumaça de charuto, quando afirma que após entrevistar Hitler, recém chegado ao poder em 1933, o mesmo nitidamente tem planos de invadir outros países da Europa, ele conversou com o próprio Goebbels que confessou-lhe que o incêndio do Reichstag ajudou Hitler chegar à chancelaria e concentrar poderes em suas mãos. Jones tenta alertar os veículos de imprensa ingleses de que uma nova Grande Guerra se avizinhava, mas ninguém o leva a sério.

Depois de fracassar em divulgar a ameaça nazista, ele recebe outra missão, ir para a União Soviética e tentar uma entrevista com Stalin. As coisas não vão bem após a Crise de 1929, e ele se pergunta como que a Rússia mostra ao mundo que está se tornando uma grande potência, se o Kremlin estava quebrado? De onde vinha todo o dinheiro? Quem estava bancando a industrialização do país?

Então, após uma entrevista na embaixada para conseguir um visto, e dizendo (mentindo) que está a mando de Loyd George, Jones se depara com a arbitrariedade da ditadura vermelha já na entrevista com a comissária que lhe questiona, ela tenta manipulá-lo e deixa claro que ele não poderá deixar Moscou, visitar o interior do país está proibido (igual Cuba que não permite que se saia dos resorts do Caribe ou a Coreia do Norte que visita ao país, só com um agente do governo monitorando para mostrar só o que interessa). O jornalista então faz uma ligação para seu amigo Paul, que está em Moscou, durante a conversa ao telefone, seu amigo lhe diz que descobriu algo que poderia render uma ótima reportagem, mas a ligação é cortada, todas as chamadas à URSS tem escutas e quando alguém fala algo contra o regime, é banido.

Jones chega à Moscou e se hospeda no Metropol. Lá conhece um outro jornalista que parece trabalhar para o Partido Comunista, o ganhador do prêmio Pulitzer Walter Duranty. A toda hora no rádio a propaganda é incessante; “Este país não tinha uma indústria de tratores, agora temos! Não fabricava seus próprios tanques, agora fabrica! etc” (me lembrou o discurso despótico, seja de qual espectro for o líder, que sempre divide o país entre o “antes” e o “agora”, uma espécie de “ano zero”, ou frases populares e populistas como “nunca antes na História desse país”). Ele fala à recepcionista do hotel, esta mais parece uma policial, que tem permissão para ficar uma semana, mas ela alega que só pode ficar dois dias.

O filme mostra Duranty como um homossexual pervertido e corrupto, confesso que é caricata a imagem de uma forma proposital, e é claro, o filme desde o início toma seu partido em criticar a URSS, mas é baseado em eventos reais, como a denúncia do holodomor, que muitos ainda hoje fazem vista grossa ou não querem reconhecer, sem nenhuma instituição punir quando se falseia a História, igual fazem quando se nega o holocausto. Enfim, independente dos recursos usados pelo roteirista, muitos dos elementos da película são inspirados em relatos de sobreviventes dos campos de fome da Ucrânia. Eu mesmo me lembrei do meu primo de batismo, afilhado da minha mãe, que morava no final da rua e brincávamos quando éramos crianças, cujo bisavô deixou a Ucrânia fugindo da fome e foi viver na Alemanha nazista, lá, era chamado de Hans (seu real nome era Ivan) e quando começou a guerra veio ao Brasil. Nunca me esqueço de seus relatos da vida após a coletivização de seu país, e o filme é bem fiel às coisas que ouvi de sua boca.

Jones conhece uma bela moça que é jornalista também, Ada, quando saem para o quarto de hotel, ele pergunta quem era o homem que estava com ela. A mesma responde “Esse é o meu Big Brother” (agente russo que ficava seguindo eles) – talvez uma alusão ao próprio livro 1984 do Orwell. Ambos querem conversar sobre a tentativa de ir à Ucrânia para fazer uma reportagem, mas precisam aumentar o som da vitrola para poder falar disso, pois o agente russo fica ouvindo tudo o que eles falam atrás da porta. Recebem a notícia de que o amigo de Jones, Paul, foi morto. Dizem ser um “assalto”, mas desconfiam de que foi morto pelo governo, pois ele sabia de coisas que não eram para serem ditas. Outra passagem interessante, é quando ele menciona o nome do livro “A Máscara da Morte Rubra” de Edgard Allan Poe, fazendo uma menção à cor vermelha.

Naqueles idos de 1933, o orgulho da URSS eram os grãos. Os hotéis sempre falam que estão lotados para impedir que eles se hospedem, então Jones suborna sempre com libras para conseguir estada, que deveriam valer muito no país. Um diálogo que ressalto também é quando Ada fala que na História há ciclos, e agora seria a vez do mundo ver a real mudança através do comunismo. Ela crê no ideal, mesmo quando no filme começa a aparecer quem era realmente o Stalin, ela ainda nega, dizendo que o ideal é muito maior do que Stalin (parece os argumentos desse pessoal ainda hoje). Sendo assim, Jones fala: “como pode defender isso mesmo após ver seu amigo Paul com quatro tiros nas costas?”. Ao longo do filme, Ada começa a rever sua crença, embora algo dentro dela negue, a quantidade de arbitrariedades é tão grande ao ver a realidade do regime, que ela começa a se convencer aos poucos de que aquilo é uma insanidade (processo que também ocorreu com Orwell e tantos outros, apesar de alguns ainda insistirem). Jones acredita na profissão de jornalista, também é idealista, e quer mostrar a verdade para o mundo, então, mentindo ao comissário do partido ao qual está encarregado, consegue uma permissão para ir à Ucrânia (ele fala russo também), mas para a viagem terá um “guia” que o vigiará até enquanto dorme. Em um diálogo com o comissário político, o mesmo degustando um leitão, em uma mesa cheia de frutas, lagosta e vodca, diz que vivem no paraíso, o partido toma conta de tudo, os seus membros tem uma ótima comida, são servidos melhor do que a aristocracia nos tempos do czar e o povo pode ir ao cinema de graça. Desconfiado, Jones consegue dribrá-lo depois do mesmo cair no sono depois de tanta vodca e adentra a um outro vagão, lá, vê uma realidade muito diferente.



Um amontoado de pessoas com roupas de trapos o olha assustadas, ele tira uma maçã de seu embornal e um garoto diz “olha, comida!”. Jones deixa cair a maçã mordida ao solo e todos começam a se matar para pegá-la. Ele pergunta a um homem ao seu lado se ele não venderia seu casaco, pois quer se passar por camponês, e o mesmo diz que dinheiro ali não vale nada, que se ele tivesse um pedaço de pão para trocar seria muito melhor. O filme a partir daí, aborda uma mancha que os comunistas custam em reconhecer; o holodomor, a morte por inanição de milhões de ucranianos que sofreram com a coletivização forçada e foram condenados à fome e ao frio.

Quando ele desce do trem, se depara constantemente com pessoas mortas ao solo, as câmeras realçam a chuva de grãos caindo nos vagões, mas a população não pode chegar perto, quem se aproxima é executado. “Para onde estão enviando estes grãos” – ele pergunta, um velho lhe responde que é para Moscou. Hoje se sabe que Stalin estava exportando os grãos para o ocidente para montar a sua indústria bélica, deixando o povo famélico perecer em nome de suas pretensões militaristas. Gareth Jones foi o jornalista que revelou ao mundo o que havia por detrás do “paraíso soviético” utópico, o ocidente custou em acreditar, diversos intelectuais e artistas relutaram em aceitar, mas a História provou a verdade, muito embora eu ainda acho que só não denunciam com mais afinco devido o armamento atômico da Rússia e o fato de quase toda a Europa ser dependente do gás russo.

A Ucrânia era conhecida como a região da terra negra fértil que poderia alimentar o mundo, e veja só, foi o local onde houve mais fome! Em uma cena marcante, quando uma multidão disputava um pedaço de pão, ele escuta de uma ucraniana: “eles estão nos matando! Os homens vieram aqui e pensaram que podiam acabar com as leis naturais, deu nisso!” – Na hora me lembrei do “Tratado de Natureza Humana” do David Hume, e o quão é tirânico um regime que visa desrespeitá-lo. No mundo todo na época se dizia que a fome na URSS era rumor (igual os defensores cegos falam hoje), que as fazendas coletivas funcionavam, que os camponeses eram felizes. Mas a mesma personagem lhe diz espantada vendo toda aquela desgraça: “A União Soviética não é o paraíso dos trabalhadores! A sociedade igualitária é igual a de seu país capitalista, só que muito pior! Os que usufruem dos benefícios, dos serviços públicos do Estado, é só a minoria ligada ao partido. Stalin não é o homem que você pensa!”.

Talvez a cena ápice do filme é quando ele encontra crianças que estão comendo algum tipo de carne, e faminto, se serve dela também, mas ao perguntar de onde vem, ele descobre que estão comendo os cadáveres. Realmente isso foi verídico, o bisavô do meu amigo Ivan disse que havia relatos de canibalismo, além da História ter documentado e comprovado.

Passado um tempo ele volta à Inglaterra e não consegue deixar de reparar na abundância de comida e produtos nas prateleiras, isso mesmo eles passando ainda os efeitos da crise de 1929. Jones se torna um ostracizado, todos começam a fazer chacota dele e de sua “versão” (o que ele viu com os próprios olhos) da URSS. Perde seu emprego no jornal, e o pior, a situação se agrava depois que os EUA reconhecem o regime da URSS (isso foi antes da Guerra Fria, é óbvio, até mesmo depois da aliança na Segunda Guerra Mundial, o Stalin era chamado de Uncle Joe carinhosamente na América). O que salva Jones é que ele consegue convencer o magnata das comunicações William Randolph Hearst a publicar sua versão, daí por conta da legitimidade e prestígio de seu jornal, o mundo se convence do que ocorria para além de Moscou, embora o regime sempre continuou negando e até hoje tem gente que não quer reconhecer (parecido com o genocídio armênio que nunca se fala sobre). Quanto ao Pulitzer, Duranty, hoje é sabido que colaborou com o genocídio dos ucranianos pois sabia do que acontecia e nunca fez nada, seu prêmio nunca foi revogado. Jones morreu enquanto fazia uma reportagem na Mongólia, por agentes soviéticos. Cerca de 10 milhões de ucranianos morreram na coletivização (número maior que do holocausto).

O filme não retratou muito o Orwell mudando de ideia, mas deixa claro através do exemplo das mesas fartas com comissários do partido vestindo fraque e assistindo ao balé de Bolshoi com seus charutos enquanto o povo se matava por um pedaço de pão e cometia canibalismo para viver, de que na fazenda animal “alguns animais são mais iguais que outros”.

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