Por: David Vega
Uma
sociedade de muros, que aqueles do lado de fora especulam como seria o lado
interno, bem como os “ilhados” uma vez dentro, se esquecem da vida lá fora. Se
a lógica do condomínio produz isso aos que se isolam, aqueles confinados em
reformatórios, presídios e sistemas corretivos de detenção do Estado, perdem
não só a capacidade do convívio em sociedade, bem como uma característica de
cooperação mínima necessária à vida em comunidade, produzindo o contrário ao
reeducando, ao invés de recuperá-lo.
Assisti
ao clássico dos anos 1990, “Sleepers – A Vingança Adormecida (1996)”, baseado
na obra homônima de Lorenzo Carcaterra (o garoto protagonista do filme). O
filme conta com um elenco de estrelas, Dustin Hoffman, Brad Pitt, Robert De
Niro, Kevin Bacon e na ala juvenil, o garoto prodígio Brad Renfro, que foi
icônico aos que cresceram nos 90, sobretudo com seus filmes tais quais Tom e
Huck, A Cura, O Cliente, O Aprendiz e tantos outros que fizeram dele mais um
“menino problemático” de Hollywood, igual inúmeros desde James Dean; quis o
destino que o garoto tivesse o fim semelhante ao de River Phoenix, ao ser
encontrado morto por overdose de heroína em seu apartamento em 2008. Nesse
ponto ao menos o Macaulay Culkin ainda está vivo! Bem, o filme retrata uma
geração perdida e sem perspectivas de pré-adolescentes que tem a infância
roubada após uma detenção.
A
história é ambientada no bairro de Hell´s Kitchen, periferia de Nova Iorque dos
anos 1966-67 composta em sua maioria de porto-riquenhos, italianos carcamanos,
irlandeses pobres e negros. Quatro amigos inseparáveis vivem o cotidiano de um
ambiente sem perspectiva, do qual as figuras mais ilustres pertencem à máfia.
Como nas palavras do personagem Gordo latino: “Você conhece esse bairro, é
dotado de extorsão e trambique!” - You never cheat a cheater (você nunca trapaceia um trapaceiro). O ídolo de todos ali seria Kenny Benny, um
homem conhecido por ser justiceiro, que vingou todos aqueles que o “passaram
para trás” desde pouca idade, fazendo valer a lei de Talião em um lócus onde a
justiça se faz através da vingança privada, na faca ou no cano do revólver, sem
existir um Estado de Direito que regula as relações dos moradores, substituído
pelo poder da igreja católica local e do padre idealista interpretado por
Robert De Niro.
Uma
passagem que me chamou a atenção, é quando o narrador, o próprio Carcaterra,
diz que acompanhava na TV (e poucos tinham aparelho de TV no bairro) os
protestos dos jovens ricos da classe alta querendo mudar o mundo; feministas
exigindo igualdade e mostrando os seios, enquanto nunca pisaram na periferia e lá,
suas mães apanhavam dos maridos. Pacifistas protestavam contra a guerra do
Vietnã e ele via muitos retornarem em caixões com a bandeira americana. Ou
liberais defendendo a legalização das drogas, mas no bairro de Hell´s Kitchen,
um intruso porto-riquenho se mudou e começou a vender heroína, até que o filho
de 12 anos de um italiano mafioso morreu de overdose e no dia seguinte, o
traficante amanheceu enforcado em um poste de luz para dar o exemplo aos demais
moradores. Nas palavras do narrador: “Para mim as mudanças que os almofadinhas
diziam defender na sociedade pouco importavam, pareciam viver em outro país!”.
Os
habitantes moravam em apartamentos apertados, de tijolos, muita gente
compartilhando um mesmo espaço trazia tensões diversas. Mas é verdade que a
molecada também se divertia, tomando banho nos hidrantes das ruas e aprontando
como todo garoto faz. Talvez fossem mais livres nesse sentido do que os meninos
dos bairros ricos. As cenas iniciais dos quatro amigos lembrou-me muito a minha
gangue de camaradas da infância quando cresci no interior. Na época que se
brincava na rua até tarde, as descobertas do amor, depois que passam a reparar
nas meninas de vestidinho e um encantamento do mundo que infelizmente logo
desapareceria, no caso dos meninos do filme, de uma forma muito trágica!
De
fato, a vida se mostra difícil desde antes de sua detenção. Há a cena do garoto
espancado pelo namorado da mãe no hospital, da menina que vai ao confessionário
dizer ao padre que está grávida e por ter tido vários parceiros não sabe quem é
o pai e da violência moral e física que sofre a mãe de Carcaterra pelo seu pai,
um imigrante italiano que mal fala inglês. A escola é um local apenas para se
cumprir tabela, pouco estão ligando para o conteúdo das aulas, pois para que estudar
se você pode trabalhar para o grande Benny, ganhar uma pistola e enriquecer em
uma semana o que um trabalhador honesto leva meses para conseguir?
Tudo viria mudar quando os quatro
amigos resolvem fazer uma traquinagem contra um vendedor de cachorro-quente.
Após roubarem seu carrinho, na perseguição, deixam o carrinho rolar escada
abaixo em uma estação de metrô e atingem a um pedestre, provocando praticamente
a sua morte. Chocados, pois não era para acabar assim, os quatro são julgados e
condenados, sentenciados por “comportamento violento” a cumprir pena em um
reformatório. Lembrei-me de quando era criança que sempre nos ameaçavam depois
de traquinagens com a temida FEBEM, hoje chamada “Fundação Casa”.
O
filme a partir de então toma um rumo totalmente diferente, muito mais sombrio
do que os problemas das famílias estruturadas do gueto de Nova Iorque.
Principalmente quando são submetidos à vigilância do líder dos guardas do
“presídio” reformatório de Wilkinson, o temível Nokes (Kevin Bacon). A forma com
que retratam os maus tratos e as brigas entre os internos lembra muito o filme
brasileiro “Pixote – A Lei do Mais Fraco”, que consagrou o saudoso cineasta
Hector Babenco, do qual o personagem de mesmo nome interpretado por Fernando
Ramos da Silva passa pelos abusos e violências de uma sociedade que jamais se
importou com o menor abandonado, sendo que a vida imita a arte, quando o ator,
que veio da pobreza, sem conseguir papéis na TV depois do filme, adentrou à
vida do crime e veio a falecer a tiros em um assalto, ganhando uma continuação
o filme anos depois contando a história de Fernando (que era da região de
Diadema na grande São Paulo).
A
situação dos quatro amigos se torna ainda mais trágica quando passam a ser
abusados sexualmente pelos guardas, uma violência inimaginável a qualquer
pessoa, pior a uma criança, nesse momento do filme senti um embrulho no
estômago que me impediu até de continuar comendo a pipoca que me acompanhava.
Embora não mostre o ato explícito, os gritos das crianças e o jogo de câmeras
passando a menção ao abuso é de deixar qualquer um revoltado! E nesse momento,
a gente fica torcendo para que os violadores sofram a punição pela lógica “olho
por olho, dente por dente”, pois é como se a justiça legalista não fosse o
suficiente, tendemos a dar razão à justiça com as próprias mãos, à vingança
privada, ao imaginar que poderia ser um filho seu, que seja um desconhecido! É
a sensação que fica ao espectador.
O
tratamento de Nokes e dos guardas os deixam mil vezes pior do que quando ali
entraram. Mostra que eram apenas garotos travessos que pregaram uma peça
levando a um acidente não proposital, e o sistema dos “reeducandos” os fez
revoltados, pois roubaram-lhes a infância, pelos estupros que sofreram
constantemente e a remoção de qualquer dignidade, esta, que começa com nosso
próprio corpo.
A
segunda metade do filme mostra os garotos já crescidos fora do sistema
prisional, dois deles adentraram ao mundo do crime e os outros dois trabalham
como advogados. Já dei spoilers demais, enfim, o título do filme já sugere
“vingança”, trabalhando a ideia de revanchismo pessoal com a de se punir os
violadores através da justiça legalista. Porém, adianto que em um local como
Hell´s Kitchen, a justiça também tem seus pormenores e intervenções, pois não
só advogados e polícias, mas os juízes também vem da comunidade, esta, que para
fazer valer a causa dos garotos que ali cresceram, é capaz de usar a
interpretação da lei para uma vingança que a nós, espectadores, produz um
sentimento de “dar o troco” aos monstros violadores de menores do sistema
prisional.
Também
nos faz lembrar de relance de outro filme clássico sobre prisões, “Um Sonho de
Liberdade” (Shawshank Redemption), mas o que choca mais é por se tratar de crianças, e assim como na
película estrelada por Tim Robbins e Morgan Freeman, é mencionada a obra
clássica da literatura “O Conde de Monte Cristo” de Alexandre Dumas, que aborda
o tratamento desumano de um prisioneiro, porém depois a sua doce vingança. No
Brasil principalmente, existem diversos “Wilkinson”, onde menores que deveriam
estar submetidos a um tratamento de reintegração ao convívio são desconstruídos
negativamente de uma forma que aprendem o ofício do crime, se antes não eram
como tais, passam a se tornar profissionais, o sistema é que retroalimenta os
grupos extraoficiais e o poder paralelo. Tendo para além dos muros
eletrificados, uma escola onde se ensina mais o que não se deve fazer do que o
contrário, em um país que o valor da vida é menor do que os bens protegidos com
seguranças armados de algum magnata, fazendo valer cada vez mais a lógica dos
muros, seja no presídio, ou nos condomínios daqueles que se isolam do mar de
miséria.
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