sexta-feira, 5 de março de 2021

O Triste Fim de Policarpo Quaresma e Os Bruzundangas - Lima Barreto

 Por: David Vega.


“As saúvas tomaram conta do Brasil!” – Quem nunca ouviu esta máxima metafórica, referindo-se quando uma caterva assume o poder em terras tupiniquins? Ela vem de uma passagem do livro magnum opus de Lima Barreto (1881 – 1922), “O Triste Fim de Policarpo Quaresma”, pai do pré-modernismo brasileiro.

Afonso Henriques de Lima Barreto, o “triste visionário” (palavras de Lilia Schwarcz), viveu nos subúrbios do Rio de Janeiro durante a transição do século XIX para o passado, filho de uma ex-escravizada e um madeireiro português, na minha opinião, é o maior nome da literatura nacional, equiparado, ou até em alguns casos, ganhando de Machado de Assis.

Apesar de pobre, conseguiu estudar na escola Politécnica ao lado dos filhos da elite carioca, local onde sofreu muito preconceito na época por ser mulato. A discriminação sofrida rendeu-lhe as melhores obras que retratam o Brasil daqueles tempos (e por que não dizer em alguns aspectos o atual?), do qual o desamparo aos negros excluídos nos morros é visível, em uma sociedade na qual a posição de classe tem característica da cor. Barreto chegou a ser secretário da famosa revista Fon-Fon, e denunciava toda a hipocrisia e autoritarismo de um país que imitava as Boulevard e Champs-Élysées parisienses no projeto de urbanização das grandes capitais, como no Rio dos primeiros anos da República, mas empurrava a “escória” indesejável para os guetos segregados que viriam a se tornar as favelas de hoje.

Defensor de uma escrita informal, onde a licença poética trazia termos, gírias e a forma coloquial popular, custou-lhe o impedimento à nomeação para a Academia de Letras, o que Lima critica em seus livros; a elite cultural apátrida rastaquera brasileira, que quer copiar tudo o que vem do estrangeiro e tem aversão ao nacional. Em “Os Bruzundangas”, publicado postumamente em 1922, ele cria um país fictício onde todos os absurdos que ali descreve são muito bem identificados como metáforas ao Brasil.

Monteiro Lobato foi talvez o único que acreditou no potencial de Lima Barreto. No ano de 1916 enviou uma nota à imprensa reconhecendo que o suburbano era um exímio romancista. Barreto chegou a publicar o livro “Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá” pela editora Revista do Brasil, de Lobato, precursor no mercado editorial, sendo que anteriormente, a maioria das publicações se dava nos folhetins ou a um alto preço das tiragens em Portugal.

O “Triste Fim de Policarpo Quaresma”, lançado no Jornal do Comércio, em 1911, traz uma crítica aos primeiros anos republicanos, sendo Lima Barreto um filho da transição de dois regimes, e talvez o “passado de glória” do império compusesse a sua imaginação, muito por causa da abolição, embora ele não fosse monarquista, inclusive chegou a colaborar com a revista ABC, de viés socialista.

Policarpo pode ser uma analogia à experiência que o próprio autor teria, sendo um idealista que fora encarcerado em um hospício; Barreto sofria de alcoolismo, e teve surtos psicóticos que o levou às internações, mais de uma vez.

O major Policarpo Quaresma, título que ganhou por uma indicação à Guarda Nacional, era um árduo patriota. Passava a maior parte de seu tempo tentando fazer reformas educacionais no país, apresentou um projeto de lei para alterar o idioma oficial do Brasil do português para o tupi, língua geral da maioria dos índios que aqui viviam. Trabalhava em uma repartição pública e ia portando um cocar, o que provocava chacotas por parte de seus companheiros.

Membro da alta sociedade, acreditava veemente no governo e no presidente (uma referência ao segundo presidente republicano, o militar Floriano Peixoto, que administrou com mãos de ferro). Os militares o usavam, era bom ter Policarpo por perto, pois sua áurea era quase que mística entre o povo que o rodeava, seu amor pelo Brasil, seu idealismo, era contagiante. Ele acreditava nas manifestações populares, tinha como melhor amigo Ricardo Coração dos Outros, quem ele chamava de “o trovador do subúrbio”, ensinava o velho major arranjos de violão e compunha versos que traduziam a beleza natural e espiritual do país. Em uma das aulas, Policarpo é observado na varanda de sua casa por homens comuns que o criticam, olham a estante de livros que ele tem na sala, e consideram aquilo “pedantismo”, indagando “Para que ter tantos livros se nem é escritor ou professor?”. No livro, Barreto descreve os autores que compõem as prateleiras do escritório de estudos; Von Martius (alemão que classificou os tipos de vegetações do Brasil), José Bonifácio (o patriarca da independência), os clássicos não só nacionais, mas universais, livros de filosofia e ciência, entre variados temas. Para o cidadão comum, é incompreensível a devoção ao saber de Policarpo.

O livro ganhou uma adaptação no cinema, em 1998, estrelado pelos atores Paulo José e Giulia Gam, produção esta que eu achei bem fiel ao livro! Tanto na obra, quanto no filme, Policarpo aparece de uma forma caricata, é uma espécie de “Don Quixote” tupiniquim. Há uma passagem em que convida um amigo e sua afilhada para jantar em sua casa, portando um terno verde-amarelo, lembrando as cores da bandeira, e pede à irmã que sirva guando, um feijão silvestre da mata atlântica, pois o feijão convencional seria estrangeiro.

   Barreto sempre orbitou entre o mundo dos excluídos, incluindo o da loucura, do qual pertenceu. Policarpo após se desentender com magistrados que trabalham na repartição pública, é internado em um hospício. Lá ele se torna uma espécie de líder dos demais loucos, que são retratados pelo autor como mais “lúcidos” do que os homens corrompidos que ocupam os cargos de importância do país e que pensam apenas em seus próprios benefícios. O médico do pavilhão acaba caindo na lábia de Policarpo, há uma cena no filme em que ele aponta para uma estante de livros no consultório e diz:

- Está vendo, doutor! O senhor tem este monte de livros, e não os leu!

E o médico responde.

- Você não é louco! É perigoso! É perigoso porque é inteligente!

Deixando o hospício, o personagem vai viver em um sítio, conhecido como “Sítio do Sossego”. Lá muda sua práxis. Começa a plantar milho, de sol a sol, com uma enxada, para assim provar para o mundo que o Brasil é o país da agricultura e irá alimentar o planeta (isso escrito em 1911!). Seu fiel amigo Felizardo, um caboclo humilde da terra brasileira, é um contraponto ao major, é preguiçoso, analfabeto, mas se encanta e contagia com o ânimo do major. Embora seja antagônico à sua figura, ele tem habilidade com a enxada, e ensina o patrão, que passa o dia abrindo roças junto do caboclo, coisa impensável para um homem da elite e de letras naqueles tempos.

Policarpo vê quem é realmente o povo do país que ele tanto ama. Um amontoado de aleijados e subnutridos que habitam casebres de adobe e sapê e não são donos da terra. Então ele começa a dar parte de sua propriedade para o povo plantar, o que os grandes proprietários não veem com bons olhos. O clima chega ao ponto em que os coronéis ateiam fogo nos alojamentos dos pobres. O livro traz o embate da terra e a reforma agrária, que permeia a História do nosso país desde a sua fundação.

Trazendo notícias da cidade, homens do governo vão ao sítio de Policarpo pedir por apoio a um levante durante o episódio da Revolta da Armada. O oficial do governo começa a falar dos problemas de interesses partidários, para um Policarpo que nem dá ouvidos e espalha veneno para combater as saúvas.

- Ou o Brasil acaba com as saúvas, ou as saúvas acabam com o Brasil! – Frase mais conhecida da história.

Entusiasmado e embebido de idealismo, Quaresma se alista na guerra do lado legalista. Mas vai se decepcionar com os reais motivos do conflito. No filme tem uma passagem em que ele fala com o presidente, mostrando um memorial para resolver o problema do analfabetismo e educação das crianças, “o futuro do país”, e o presidente boceja, dizendo “Você é um visionário Quaresma! Essa guerra é para resolver os meus problemas, eu já tenho problemas pessoais demais para me preocupar com isso!”.

Barreto faz uma dura crítica ao positivismo, doutrina que permeou os quartéis e a República daqueles anos. Não vou contar o final da trama, mas a meu ver é um livro primordial para se entender o Brasil e nossa literatura. Escrito há mais de cem anos e com uma linguagem atual, além do tema.

Outro livro de Lima Barreto que me marcou muito foi “Os Bruzundangas”. Um país fictício inspirado nas hipócritas elites do nosso. Nesta sociedade, os “intelectuais” eram assim considerados por usarem uma linguagem erudita, termos requintados e afrancesados ou em latim, mas no fundo não dizem nada! Os jovens incapacitados de se graduarem nas faculdades mais difíceis, se dirigem às universidades de locais mais distantes do país, para conseguirem o diploma.

Lembro-me de uma passagem em que ele narra uma entrevista de emprego para o cargo de embaixador. Para a vaga se apresentam dois jovens, um louro, e outro negro. O negro se mostra mais capacitado, fala vários idiomas, formado em uma instituição de renome, enquanto o eurodescendente é um “burro” (mas rico) e membro da elite. Então, o entrevistador dispensa o jovem de origem humilde e contrata o “louro de olhos azuis”, pois ele causaria uma “melhor impressão” do país no estrangeiro. A elite queria mostrar para o mundo que o povo de Bruzundangas era “bonito” (nos padrões convencionais), ele não precisava ter capacidade intelectual, bastava saber sorrir e dançar valsa.

Ele fala da titulação “doutor”, atribuída a qualquer um que habita algum cargo de importância ou elevado, mesmo este nunca pisado em uma instituição educacional. Menciona o caso do fictício Felixhimino Bem Karpatoso, um deputado que falava muito bem de assuntos de finanças, orçamentos, impostos diretos e indiretos e demais coisas “cabalísticas” da ciência de obter dinheiro para o Estado. O tesouro da Bruzundanga, quase sempre vazio, precisava destes “magos” financeiros, para não se esvaziar de todo. No livro ele escreve: “Se era médico, advogado, engenheiro ou professor, ninguém sabe, mas o tratavam de doutor”.

O livro é atualíssimo, parece termos os mesmos problemas desde há cem anos, fazendo desta metáfora algo dos dias de hoje. Lima Barreto, o visionário que nunca viveu de seus livros, morreu pobre e louco, excluído da sociedade que era racista demais para aceitar um mestiço como intelectual, suas obras denunciam todas as mazelas de uma sociedade totalmente autoritária e desigual, inaugurando o pré-modernismo que viria a culminar na Semana de Arte Moderna de São Paulo de 1922, ano de sua morte, onde o Antropofagismo encabeçado por Oswald de Andrade questionou a versão oficial da História do Brasil, apontando o dedo para a ferida e inspirando uma literatura mais popular, crítica e marginal, dando uma outra narrativa ao país, menos romântica, que muito deve a Lima Barreto e a sua produção.

quinta-feira, 4 de março de 2021

Francisco Marins e as grandes aventuras

Por: David Vega.


Eu sempre fui um grande fã de livros de aventuras, cresci lendo os clássicos como Huck Finn e Tom Sawyer, bem como os heróis das grandes façanhas que muito colaboraram para minha imaginação, durante as várias noites em claro, ainda lá no sítio, onde podia viver estas “personas” junto de meus companheiros fazendo trilhas, subindo em árvores e experimentando uma infância incomum para as crianças da geração tecnológica de hoje.

Todos conhecem estas figuras da literatura norte-americana, se não pelos livros, pelas inúmeras adaptações no cinema, mas eu sempre indago a mesma questão; “Quem seria o nosso Mark Twain brasileiro?”. Na ponta da língua, muitos diriam “Monteiro Lobato”, quem organizou nosso folclore, defendeu o petróleo e traduziu os grandes autores, criando a primeira editora brasileira, a “Companhia Editora Nacional”, e apesar de controverso, acusado de racismo, é inegável a sua importância. Porém, há um outro autor, mais contemporâneo, também do interior paulista, que eu colocaria nesta equiparação dos grandes escritores de aventuras, Francisco Marins.

Nascido em Pratânia, mas radicado em Botucatu, criou o “Clubinho Taquara-Póca”, que visa difundir a vida rural e cultural de um Brasil profundo. É membro titular da Academia Paulista de Letras e já ganhou o prêmio Jabuti. Dedicou-se à literatura infanto-juvenil e tem seu nome na Oxford Children´s Literature, sendo o único escritor brasileiro a figurar na famosa coleção europeia Delphi, que reúne os clássicos da literatura juvenil de todo o mundo. Faleceu em 2016, mas seu legado segue vivo na criatividade de cada menino e menina que conheceu suas histórias.

                Tive acesso a seus livros através da reedição de alguns números pela coleção Vaga-Lume, da Editora Ática, famosa nos anos 1970-80, que eu adquiri na década de 90, pouco antes de ir para o antigo ginásio. Marins mistura eventos da História nacional com personagens fictícios que atravessam acontecimentos e vivem fatos verídicos, nos ensinando sobre nosso passado de uma forma lúdica e divertida, não deixando a desejar a nenhum “Indiana Jones” hollywoodiano. Os personagens são marcantes, quem leu não se esquece de Tonico e Perova pelo interior do Mato-Grosso em busca de diamantes, capturados por índios e perseguidos por bandeirantes, a expedição aos Martírios ou de Didico e seu fiel cãozinho Tiguera, em uma Canudos seguidora de Antônio Conselheiro durante a guerra.

Em “A Aldeia Sagrada”, Marins descreve um sertão assolado pela seca. O jovem Didico, de 12 anos, sonha em seguir os passos de seu padrinho, Chico-Vira-Mundo, que não conseguia ficar por muito tempo em um só lugar. Trazia a descrição de terras além de sua aldeia, na Bahia de 1897. O garoto cresceu idealizando uma vasta realidade fora de seu mundinho. Depois que seu boi, Pomboca, foi morto e lhe roubaram a carne, Didico e Tiguera partem em uma aventura que os leva até Canudos, na trama, há várias referências ao clássico de Euclides da Cunha, “Os Sertões”.

 


            Antônio Conselheiro foi uma espécie de místico popular que percorria o sertão, levando consigo uma legião de seguidores famélicos, em um Brasil dos primeiros anos da República. Acusado de ser monarquista, por se opor à separação da igreja e do Estado, Conselheiro liderava o assentamento de Canudos, que chegou a ter 25 mil habitantes, tornou-se uma ameaça para o novo regime, então, o presidente Pudente de Morais, o primeiro civil a ocupar o cargo, enviou o exército altamente equipado para derrotar os rebeldes, arrasando a cidade e aniquilando quase todos, que bravamente resistiram até o fim, o evento foi considerado um massacre.

              Há uma passagem em que ele narra quando levaram o Bendegó, o maior meteorito já encontrado no Brasil, para o Museu Nacional do Rio de Janeiro (que sofreu um incêndio em 2018). Marins, como amante da vida rural e da cultura do Brasil profundo, a cada capítulo do livro, deixa um glossário com palavras que compõem a vida do sertanejo, muitas, estranhas aos garotos da cidade. Descreve objetos e paisagens pela ótica do menino que não se difere de outro qualquer, trazendo uma proximidade ao leitor jovem do personagem. Eu me identifiquei muito quando li, estava na 7ª série, e contribuiu para a compreensão deste evento da História nacional. Anos depois fui ler a obra de Euclides, e em várias passagens eu lembrava de “A Aldeia Sagrada”.

            Outra série de aventuras de Marins que me marou muito foi a protagonizada por Tonico e Perova, dois aventureiros que partem em busca de um diamante destinado ao imperador, no Brasil do século XIX. No livro, o célebre escritor menciona a expedição Langsdorff, encabeçada por um alemão naturalizado russo de mesmo nome, que percorreu mais de dezesseis mil quilômetros Brasil adentro, registrando aspectos de nossa fauna e flora, classificando plantas, animais e insetos. O famoso artista Aimé-Antoine Taunay, filho do criador da Academia Imperial de Belas Artes, morreu afogado no Rio Guaporé durante a expedição. Este é o pano de fundo da jornada dos dois heróis brasileiros.

 


O livro é a continuação de “A Serra dos Martírios”, onde Marins menciona que o menino Antoninho, personagem da trama, avista de uma canoa a montanha das duas cabeças - este viria a ser anos depois o grande bandeirante Antônio Pires de Campos, que partiu para os sertões com seu pai, como era de costume na época. Os aventureiros partem em busca do índio Bugre-do-Chapéu-de-Anta, no Amazonas. Muito desta epopéia me lembra o icônico explorador inglês Coronel Percy Harrison Fawcett, que sumiu no Mato-Grosso quando procurava por uma cidade perdida no meio da selva, depois de viver entre os Kalapalos. Inclusive cheguei a escrever minhas próprias histórias de aventuras baseando-me nestas figuras, que em breve irei publicar.

Os livros são ricamente ilustrados, e me pergunto se ainda irão compor a imaginação de nossos jovens no mundo atual, imersos em realidades virtuais em que o jogador tem que decapitar o oponente e o sangue espirra na tela do televisor. Estas aventuras são atemporais, e se não quisermos uma sociedade composta de pessoas individualistas, sem contato algum com a natureza, materialistas ao extremo, onde a futilidade reina como uma religião, é resgatando estas façanhas educativas para nossas crianças, antes que seja “tarde demais”.

terça-feira, 2 de março de 2021

A Máquina do Tempo - H. G. Wells

 Por: David Vega.



Praticamente todo mundo conhece alguma história de viagem no tempo, teorias de "time Travellers" que aparecem em fotos usando objetos do futuro quando ainda não teriam sido inventados. Quem nunca acompanhou a série cinematográfica "De volta para o Futuro"?

Mas o que poucos sabem, é que essa ideia de perpassar épocas viajando em máquinas mirabolantes, foi primeiramente idealizada pelo escritor britânico H. G. Wells, considerado o pai da ficção científica, quem em 1895, abriu as portas da especulação da viagem no tempo antes da teoria da relatividade de Einstein.

Dentre as suas previsões, estão a bomba atômica, um Estado universal, o tanque de guerra, o correio de voz e os lasers. Wells era ainda um árduo defensor do socialismo, chegou a concorrer ao parlamento pelo Partido Trabalhista, a ideia utópica de uma sociedade igualitária sempre aparece metaforicamente em seus livros, bem como a crítica ao imperialismo de seu tempo. Lançou o "The Rights of Man: What are we fighting for?" (Os Direitos do Homem: Pelo que estamos lutando?), ensaio que serviu de inspiração para a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, de 1948.

A "Máquina do Tempo" é seu primeiro romance, originalmente publicado em folhetins, porém há outros famosos como "O Homem Invisível", que virou uma série de TV e "A Guerra dos Mundos", este chegou a ter uma adaptação dirigida por Steven Spielberg. Devido sua formação em biologia, ele usa elementos da seleção natural de Darwin, constitui uma forte crítica à sociedade industrial e às desigualdades sociais, através de dois grupos que iriam compor o futuro no ano de 802701, os proletários Morlocks e os privilegiados Eloi (menção à luta de classes marxista).

Quando se fala em arte ou estética, sabemos que ela tem um papel fundamental que conduz e busca orientação do efeito desejado, da "mensagem que se quer transmitir". Pode-se afirmar que o discurso ideológico da obra não fica atada apenas aos diálogos, como se fosse uma ordenação. Cada elemento tem uma representatividade metafórica de algum conceito ou personalidade existente, e é fácil identificar tais visões do autor no livro. 

O enredo é de um cientista que apresenta uma geringonça ao prefeito de Londres e um psicólogo, todos os personagens são chamados pelas suas funções. Foi inspirado no pessimismo de Jonathan Swift em "As Viagens de Gulliver", na época, os livros ficção serviam para justificar o imperialismo, temos "As Minas do Rei Salomão", de Haggard e "O Mundo Perdido" de Sir Arthur Conan Doyle, por isso a fantasia de Wells é pioneira, não só no estilo, mas na abordagem crítica.

Pois bem, o cientista tenta convencer as autoridades de que seu invento realmente pode transportar as pessoas através do tempo. Segundo ele, o Espaço, para os matemáticos, teria três dimensões; comprimento, largura e altura, definidas em relação a três planos, cada qual em ângulos retos aos demais. Mas haveria a quarta dimensão, por exemplo, no pensamento intangível, as coisas de ordem abstrata. Se é possível pela memória lembrarmos de um evento que vivenciamos no passado, mesmo que nos transpomos à imagem e sensação por alguns segundos, sua máquina seria capaz de levar a matéria, no caso o nosso corpo, para este lapso de memória, e ainda, avançar no tempo também, para aquilo que projetamos.

Então, o personagem narra a sua experiência. Diz que encontrou no futuro uma raça de possíveis humanoides de baixa estatura e um idioma de difícil compreensão. A ideia socialista do autor aparece quando ele descreve que a competição, que seria uma enérgica tentativa de distinção, havia sido superada pela abundante vitalidade que a humanidade teria para mudar as condições que vivia. Fazendo daquela energia incansável competidora a nossa fraqueza. A guerra fora abolida, as doenças, bem como a necessidade de labuta. A sociedade havia se tornado vegetariana e frutífera, sendo que os animais que conhecemos foram extintos. Como o autor menciona: "Nós nos mantemos aficionados pela pedra de amolar da dor da necessidade, e parecia-me que essa odiosa pedra finalmente se partira". A população mundial fora controlada, sem o aumento exponencial, fruto da explosão demográfica após a agricultura, sobretudo depois da Revolução Industrial.

O narrador faz amizade com uma habitante chamada Weena, e embora não consiga se comunicar muito bem, através dela vai compreendendo melhor aquela civilização. Percebe que todos morrem de medo do escuro, ele perde a sua máquina e a chance de voltar ao presente, sempre desejou o dia de amanhã, e agora quer voltar para o ponto de partida. A máquina ficou detida dentro de uma grande esfinge branca, da qual os Eloi, a raça alegre e igualitária, temiam.

Com o passar do tempo ele descobre uma fenda subterrânea, e toda a impressão de futuro justo que tinha, cai por terra. Uma outra raça, a dos Morlocks, vivem embaixo da terra. Seus olhos refletem a luz, como de animais noturnos, igual as corujas e os gatos. São mais altos e fortes, parecem primatas. Depois de tanto tempo servindo à aristocracia, a sociedade saudável e feliz era restrita a uma minoria que podia ver a luz. O autor menciona o operário de sua época, que passava quase todo o tempo sem ter contato com o sol, em metrôs, túneis, minas de carvão, fábricas e lojas subterrâneas, no futuro, a espécie evoluiu e ele adaptou-se a viver como toupeiras, uma crítica ao estilo de vida e falta de lazer das classes trabalhadoras do século XIX. As classes dominantes teriam diminuído de estatura e se infantilizado, como um ser que não vive adversidades reais da vida, de tanto usurpar a massa, teriam regredido, tornando-se inocentes. O que o personagem não entende é como as duas classes se mantém segregadas, ocupando rigorosamente seus espaços na sociedade, sem uma revolução ou mudança dos explorados, que parecem ser bem mais fortes. A ideia de que a base da pirâmide é mais numerosa que o topo.

Os Morlocks eram carnívoros e tinham aparência horrível, viviam em meio à sujeira e decadência, uma metáfora aos guetos da Londres daquela época. Talvez a grande esfinge e o Palácio Verde mencionados no livro se refiram aos templos religiosos e à ciência, no edifício verde havia fósseis e era uma espécie de museu, ambos servem como a argamassa que sustenta a estrutura social, além de reproduzir a ideologia dos dominadores. 

Nas noites de lua nova, onde a escuridão se acentua, os Morlocks saem do subsolo e atacam os indefesos Eloi, farejam a carne. Wells fala que embora ainda haja as duas classes antagônicas, a relação entre elas é de atrito, talvez uma referência aos movimentos revolucionários, mas mesmo assim, ainda há a distinção entre elas. Não vou contar mais sobre o livro, recomendo a leitura, é sem dúvida uma maneira lúdica de se aprender sobre luta de classes, alienação e consciência de classe, através do entretenimento da ficção e fantasia de um futuro fantástico.

Outra coisa pouco mencionada é que uma das distopias, criadas por um autor nacional, foi por Monteiro Lobato, em seu "O Choque das Raças", que mais tarde renomearam "O Presidente Negro", inspirado em Wells, fala também de uma máquina do tempo e um futuro em que a América teria um presidente negro e isso desencadearia um conflito entre as raças. O livro é pouco divulgado por ser considerado racista, devido às ideias eugênicas de Lobato, porém é incontestável a qualidade do texto e a influência do escritor britânico.

Não saberia dizer como será o dia de amanhã, o historiador é um profeta com os olhos voltados para trás, como dizia Eduardo Galeano, mas afirmo que quem tem a narrativa sobre o passado, controla o futuro (e o presente), e enquanto tivermos um arcabouço enorme entre as classes, não me admira termos humanos vivendo nos esgotos como ratos, e uma classe privilegiada imune à luz, pois ali, nesta realidade distópica, bem como hoje, o sol parece não nascer para todos.

segunda-feira, 1 de março de 2021

Walden - A Vida nos Bosques - Henry David Thoreau

Por David Vega.



Definitivamente meu livro favorito! Eu conheci Thoureau através de outro ensaio seu, o “Desobediência Civil”, na minha época de tendência anarquista. Martin Luther King Jr, Kennedy e Gandhi foram alguns líderes influenciados por seu pensamento.

Por não pagar impostos, Thoureau passou a noite detido, e refletindo sobre o caso, escreveu relatando o assédio do Estado para com o cidadão, o monopólio do uso da violência pelos órgãos, ideia weberiana (Thoreau é anterior a ele).

No ano de 1845, cansado da civilização, decide isolar-se em uma cabana às margens do lago Walden, em um bosque próximo a Concord (Massachusetts). Esta experiência pode ser considerada como precursora de inúmeros outros livros e filmes inspirados em “Walden – A Vida nos Bosques”. Me vem à cabeça o “Na Natureza Selvagem” de Jon Krakauer e o filme “Capitão Fantástico” com Vigo Mortensen, entre outros. É a ideia do retorno à natureza, defendida por Rousseau.

No filme Sociedade dos Poetas Mortos (1989), o “captain”, professor interpretado por Robin Williams, cita uma passagem de Walden: “Fui ao bosque porque queria viver a vida”. Thoreau era amigo de Ralph Waldo Emerson, ambos encabeçaram o movimento transcendentalista da literatura norteamericana, inclusive as terras em que ele construiu a sua cabana eram propriedade de Emerson. A negação à vida civilizada e a contemplação da natureza que ele nos legou serviu de base à onda hippie na década de 1960, que tinha Thoreau como ídolo (até mesmo peregrinações ao bosque em que ele viveu acontecem nos dias atuais).

O livro é um hino à vida simples, à oposição do consumo desenfreado, às aparências de uma vida vazia em sociedade, isso ainda no século XIX. Ele narra suas atividades cotidianas carregadas de reflexões filosóficas e antropológicas. Lembro-me de uma passagem em que fala que os europeus morriam de frio em volta da fogueira na época da colonização, e os nativos andavam nus, pois seu calor seria interno, dispensando vestimentas, diz que o verdadeiro filósofo tem esse calor interior. Também menciona a roupa, pessoas que preferem se rastejar a andar com uma calça remendada, em uma sociedade que te avalia pela vestimenta; no caso, um cão latia direto para um espantalho, enquanto que abanava o rabo para bandidos andando sem roupa – a nudez nos une a todos!

Afirma que hoje temos professores de Filosofia, e não filósofos. A vida simples aos olhos de muitos é anormal, ele era agrimensor, quando resolveu largar seu ofício para viver na floresta, pensaram em interná-lo, como se tivesse “enlouquecido”. Identifiquei-me muito com sua experiência, e lembro sempre do livro quando vou colher abacates no terreno do vizinho ou varro as folhas do quintal. Não precisamos de muitas frivolidades e supostos luxos que nos aprisionam. Quem experencía o campo não consegue voltar ao urbano, aos velhos atavismos de um lócus artificial onde lá sim é a verdadeira competição e não na “selva”.

Outra passagem que gosto é em relação a estarmos “conectados” o tempo todo, ele fala das estradas de ferro (imagina se visse as viagens transoceânicas de avião atuais!). A mobilidade das fronteiras vive se alterando, como em uma confederação germânica, nem mesmo o alemão saberia dizer qual o limite de sua pátria.

“O país em si, com todos os chamados avanços internos, aliás, são externos e superficiais, é uma instituição descomunal e exageradamente crescida, atravancada de mobília, presa nas próprias armadilhas, arruinada pelo luxo e pela gastança desenfreada, pela falta de cálculo de um objeto digno”. (THOREAU).

O célebre escritor critica a vida “depressa”, vivemos muito rápido, pensamos em fazer comércio de tudo, quantificamos em valores todas as instâncias da vida, bem como a nossa força de trabalho e o pensamento abstrato.

Por que precisamos nos comunicar por telégrafo ou locomovermos por trilhos? Nossa vida é pautada pela atividade laboral, uma vida de servidão para se construir os trilhos, remendamos a nossa vida para tentar melhorá-la; se todos resolverem não acordar cedo e sair à labuta, quem irá construir os trilhos? Não haverá ferrovia! Em cada estrada de ferro do país estão os anos perdidos de servidão da grande massa, sejam os que martelam os pregos nela ou os que deslizam sobre os trilhos para chegar a lugar nenhum.

Thoreau também confessa que o serviço postal é irrelevante, o correio não lhe fazia falta, uma vez que acontecimento algum seria de extrema importância desde a última notícia que se ficasse sabendo. Por exemplo, se soubesse da coroação de um novo rei na Espanha, isso já bastava para estar informado sobre o país, não precisamos a toda hora acompanhar cada declaração, cada movimentação de uma celebridade ou evento, eu penso que se ele tivesse visto a internet hoje, estaria ainda mais horrorizado com o volume de informação e poluição visual. Basta você saber que Isabel e Fernando unificaram a Ibéria, ou os motivos da Revolução Francesa ou da Revolução de 1649 na Inglaterra e pronto, já sabe o essencial, pois alguns eventos e notícias, como as relevantes, nunca ficam velhas ou ultrapassadas.

            O minimalismo está na moda para algumas pessoas, Thoreau ganha seguidores desta febre. Há uma passagem em que ele fala que uma casa não precisa de mesas com dez ou mais cadeiras, sofás e poltronas, no máximo deveríamos receber uma ou duas visitas esporadicamente, e para isso, um lugar para se sentar já seria o suficiente,  podendo ser até no cimento ou chão batido. Recordo do Jeca Tatú, no conto do “Urupês” de Monteiro Lobato, que tinha apenas um banquinho de três pernas, então o encostava na parede para sentar-se, com preguiça de pregar a quarta perna. Uma casa não precisa de móveis, basta uma cama feita de folhas ou palha, um fogão, e já está!



Apesar de sua vida dedicada à negação do mundo industrial, Thoreau morreu cedo, aos 45 anos, de bronquite. O que poucos sabem é que ele também foi professor na escola pública, profissão que abandonaria rapidamente, pois se recusava a aplicar o castigo corporal aos considerados “preguiçosos e indisciplinados”, alunos estes, que muito ele se identificava, por não se atarem às regras. Também foi funcionário de uma fábrica de lápis, sendo o criador do uso da argila para fixar o grafite na estrutura de madeira, dando forma ao lápis que conhecemos hoje (até então se escrevia com carvão).

 “Nunca haverá um Estado verdadeiramente livre e esclarecido até que o próprio Estado venha a reconhecer a pessoa como um poder superior e independente do qual deriva todo o seu poder e autoridade e o trate em conformidade”. (no ensaio “Desobediência Civil”).

            O notório escritor filósofo se opunha ferozmente à escravidão, colaborando com o movimento abolicionista de sua época, e militou frente à investida dos Estados Unidos contra o México, em uma guerra que roubou dos mexicanos quase metade de seu território.

            Ele foi um ávido observador naturalista, registrando em seu livro como a floresta se regenerava após algum incêndio (inclusive chegou a ser acusado de provocar um e negligenciar enquanto pescava), como os animais ou o vento espalhavam as sementes. Tem uma passagem no livro em que fala da espessura do gelo, e descreve as camadas congeladas do lago no inverno, até mesmo as bolhas que formavam entre elas. Descreve os lagos das redondezas como “mais belos que as nossas vidas” e “mais transparentes” que o carácter dos homens. Para Thoreau, a alegria era a condição da vida. Bastava estarmos respirando, contemplar o meio ambiente que nos abriga.

            De acordo com os transcendentalistas, existiria uma unidade essencial de toda a criação, espécie de animismo; além da bondade inata do ser humano (muito questionada pelos hobbesianos). A alma de cada indivíduo é idêntica à alma do mundo e contém o que o mundo contém. As condições naturais e espirituais possuem uma horizontalidade, e não há uma hierarquia entre seres humanos e animais.

            No capítulo XV, ele descreve raposas e cães selvagens uivando para a lua, “como se se debatessem nas garras de alguma angústia, ou quisessem expressar-se, lutando por claridade ou por serem de uma vez cães”, ali, indaga se não existe uma civilização também entre os animais, igual entre os homens: “Para mim, assemelham-se a homens rudimentares, escondidos nas tocas e ainda na defensiva, à espera da transformação” (THOREAU, 299).

            Se eu fosse colocar cada parte interessante desta obra incrível, praticamente a transcreveria aqui. Posso dizer que não sabemos quem realmente somos, não vivemos adversidades o suficiente para termos noção de nossa reação quando ficamos sem fogo, aquecimento ou uma refeição. Viver nos bosques é um exercício de autoconhecimento, é uma forma de filosofar na práxis, e talvez é isso que o sistema não queira, que tenhamos uma outra cosmovisão e estilo de viver, se utilizando de toda essa ideologia consumista e a urbanização desenfreada, que cada vez mais nos afasta da natureza.

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