quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Leões e Cordeiros (Lions for Lambs)

 Por: David Vega



Leões e Cordeiros (Lions for Lambs), filme de 2007 que faz um retrato da política externa americana. Lembro-me de ter ouvido a recomendação do filme quando estava ainda na faculdade. A trama se passa entre uma jornalista, Janine Roth (Meryl Streep) e o senador Jasper (Tom Cruise). Ela é enviada de um jornal conceituado para entrevista-lo, ele pretende lançar na imprensa a sua estratégia para ganhar a guerra ao terror. No diálogo entre os dois, que toma mais da metade do filme, as duas visões de mundo conflitantes são expostas; o senador é um tanto crente em novas estratégias para encurtar a guerra no Afeganistão e ela cética, uma liberal (no sentido norte-americano; Democrata) que deixa transparecer sua preferência política. O ideal da jornalista defende o repatriamento das tropas americanas (o curioso é que são os democratas os que mais investiram em intervenções externas) enquanto o senador, um típico militarista a serviço do presidente (lembremos que na época em que o filme foi feito ainda estava na Casa Branca o Bush, tendo Obama sido eleito no ano seguinte).

Há muita serventia no diálogo entre ambos. A passagem em que o senador Jasper faz a comparação com Roma, estando eles em Washington, capital repleta de colunas jônicas e o Capitólio, e ela ironicamente responde “Vocês estão lá (no Oriente Médio) para ficar, igual Roma” – ou seja, invalidando o argumento de que a guerra ao terror seria apenas temporária até resolver a situação do Taleban. Também há a todo o momento a comparação com o Vietnã, o trauma dos EUA. Curioso é que recentemente, na administração Biden, os americanos foram praticamente expulsos de lá, saíram deixando tudo para trás, como vemos nas imagens dos aviões e helicópteros abarrotados de gente saindo às pressas. De fato, de 2007 pra cá, os EUA perderam muito de sua influência no mundo. Já não são a potência igual dos anos 1990. Mal conseguem junto da OTAN resolver a guerra da Ucrânia, e sua zona de influência é questionada inclusive onde sempre fora seu quintal, a América Latina. Por mais que apoiem revoluções coloridas, não conseguem mais desempenhar o papel de “polícia” do mundo igual quando o filme foi feito. O 11 de setembro ainda estava muito recente na época em que o filme estreou.

Em paralelo ao diálogo entre ambos, há outra conversa de extrema relevância, entre um professor de Ciência Política (Robert Redford, que inclusive também é diretor do filme) e o jovem Todd (Andrew Garfield). Todd parece desanimado querendo abandonar o curso e então tenta ser convencido pelo velho professor. Logo na cena inicial desse núcleo do elenco, ele menciona Platão e Aristóteles, e relacionando com um passado idealizado, desapontado, diz que não pode seguir em frente em uma sociedade injusta etc. O professor para contra-argumentar, menciona sobre dois estudantes que teriam sido os melhores que já teve, um jovem afro-americano e um hispânico (Arian e Ernest), estes, abandonaram o curso para juntarem-se aos Marines. O professor diz que assim o fizeram não só por conta do salário, que é alto, mas para dois jovens periféricos essa seria a chance de suas vidas. Se voltassem vivos, graduados e com serviços prestados ao país, poderiam ter uma posição de destaque que seria quase que impossível a dois jovens de sua condição, de sua origem na sociedade. O próprio professor foi um veterano no Vietnã, com cicatrizes da guerra, e entende muito bem a ótica dos garotos pobres. Um dos argumentos, que foi brilhante no filme, é de que a pátria América, que menos fazia por garotos pobres negros e latinos, se servia justamente deles; eram os que davam a vida na guerra por ela, enquanto os “mauricinhos” bem nascidos e mimados desistiam do curso por não aceitarem as adversidades da vida. Todd se decepciona com o mundo, mas é mais um revoltado de apartamento, pois sequer entende a dor dos que realmente precisam dar o sangue para sobreviver. O professor lhe passa a missão então de voltar ao curso e ser um aluno exemplar, com o potencial que ele tem, para ao invés de ficar revoltado reclamando do mundo, tentar fazer algo, dentro de seus recursos, para uma sociedade melhor.

Também, paralelo a isto, há as cenas de Arian e Ernest na guerra do Afeganistão. São usados de isca, de cobaias em uma missão para atrair os Talebans. Talvez essa fosse a grande ideia de encurtar a guerra que o senador tenta argumentar com a jornalista, colocar a vida de garotos em risco para que o senado possa ter uma harmonia maior e o presidente tenha mais governabilidade. Clausewitz dizia que a política é a extensão da guerra por outros meios, mas o filme mostra que os engravatados perfumados na cúpula do governo, movem peças de xadrez enquanto jovens perdem a vida. A jornalista se revolta com isso, quando o senador explica seu plano e que será “a qualquer custo”, sabendo que ela não poderá fazer a matéria como gostaria (de uma forma crítica) pois seu superior na redação precisa seguir a linha do jornal, que joga em favor do governo e não pode por vários motivos tecer a crítica que ela tanto faria empenhada. No diálogo, para quem gosta de História, há várias menções interessantes, como quando ela diz que participou na sua juventude de Maio de 1968, as revoltas estudantis que começaram em Paris e espalharam-se pelo mundo. A visão de uma “liberal” como ela não dá conta do realpolitik, fazendo-a decepcionar-se (o velho embate entre idealismo e realismo, muito presente nas Relações Internacionais entre kantismo e hobbesianismo).



Enfim, recomendo o filme, tanto o diálogo entre o senador e a jornalista, bem como entre o professor e o garoto valem a pena, e fazem da obra um valor inestimável nem tanto pelas cenas de ação, mas pela riqueza das conversas, é um filme para quem gosta de História e Política. Robert Redford se saiu bem não só em seu papel de ator, mas como diretor também, lembra em parte outro filme em que atuou “Todos os Homens do Presidente”, ao lado de Dustin Hoffman, sobre o impeachment de Nixon e o caso Watergate (tenho uma resenha sobre ele neste blog) - este filme podemos considerar histórico, pois a sua atualidade à época em questão, bem como ainda hoje, tem a serventia de ensinar sobre o passado recente em uma sociedade que vive seus resquícios na política e vida cotidiana, sobretudo da América, até os dias atuais.


sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Taxi Driver

 Por: David Vega



Martin Scorsese nos presenteou com a obra prima “Taxi Driver” em 1976. O filme conta a história de Travis (Robert De Niro), um ex-fuzileiro que tenta voltar à normalidade da vida na América (recém saída da Guerra do Vietnã). Travis sofre de insônia, então decide trabalhar de taxista para uma firma às madrugadas. Logo no início do filme, o dono da frota de taxi lhe adverte que pela calada da noite nos subúrbios da cidade grande ele corre risco devido à violência e as zonas de perigo onde irá circular, mas mesmo assim, o jovem aceita o emprego.

Bem, creio eu que a maioria de vocês conhece o filme por ser um clássico, então resolvi comentar certas entrelinhas que a obra nos induz, puxando um pouco para a visão sociológica e filosófica que muito pode ser a intencionalidade de Scorsese.

Logo no início do filme, Travis agradece à chuva, pois segundo ele, nos dias chuvosos todas as ruas são limpadas dos dejetos e toda a sujeira, da qual ele compara com a “ralé” (em inglês o conceito de “mob”) que ali reside; prostitutas, homossexuais, cafetões, degenerados e junkies de toda espécie. O próprio personagem de De Niro tem um aspecto de um homem do interior, calça botinas e anda com camisas xadrez, além do casaco militar de quando serviu aos Marines. Explicita a visão de um conservador que se choca ao ver o dinamismo dos guetos de uma cidade grande, e historicamente isso faz muito sentido, pois indivíduos que saíram das relações vicinais, do comunal, da solidariedade mecânica, ao se depararem com a complexidade de um grande centro urbano, tem uma difícil assimilação. Não que não exista meretrícios no campo, mas a decadência escancarada dos valores a ele sagrados, produz uma inquietação e rejeição do meio urbano corrompido. Enganam-se os que acham que a revolta é exclusiva aos que visam alterar a ordem. Muitas vezes a rebelião se dá aos que visam manter a ordem e os valores morais questionados por uma modernidade que rompe os laços invisíveis de um bom funcionamento orgânico do todo, assim como em uma cidade pequena e pacata tudo funciona intuitivamente, na cidade grande, mesmo através da lei e a impessoalidade que é tão cara a muitos, tais conexões se perdem e muitas vezes isso é incompreensível aos que vêm de um lugar mais conservador.

O filme, por ser dos anos 1970, de acordo com as pautas mais atuais, pode parecer preconceituoso quando coloca no mesmo balaio de traficantes e marginais os negros e homossexuais, mas a caricatura que se faz de Travis indica que seu senso de justiça, quando resolve comprar armas, e visivelmente vemos a sua transformação, radicalizando-se, indica que mesmo os justiceiros que seguem na lei de Talião (olho por olho, dente por dente) podem estar fora do ordenamento legal assim como a ralé da qual tanto detesta e visa erradicar.

Outro ponto que o filme nos mostra é a relação do outsider com os grupos estabelecidos. Travis é alguém de fora que não compreende aquela sociedade que o rodeia. Ele até gostaria de fazer parte como alguém normal, mas sua solidão o impede. Desenvolve hábitos incomuns, como frequentar cinemas eróticos, e a falta de noção que o permeia é tamanha, que ao conhecer uma garota e chama-la para sair, a leva a uma dessas sessões achando que seria “normal”. A mesma logo foge de lá e rompe qualquer relação com Travis. Se nota no personagem do motorista de taxi uma ingenuidade, e toda ingenuidade pode ser considerada um fator que leva à psicopatia, principalmente quando não se aceita parte da natureza humana hobbesiana, do homini lúpus homini, na tentativa de trazer uma suposta bondade incorruptível do seu humano ele rebela-se. Fica claro na conversa que Travis tem com um motorista de taxi, seu colega mais velho, quando pede um conselho, e a voz da experiência lhe diz para “deixar pra lá”, “relaxar” e aceitar que as coisas são assim mesmo e continuar vivendo, procurar se divertir na medida do possível. Porém Travis não consegue ver dessa forma, e inicia uma rebelião interna contra a decadência dos guetos que o rodeia, segundo ele, “são esgotos a céu aberto”, assim como fala ao candidato à presidência que ele leva em uma corrida de taxi.

Quanto a esse episódio do candidato à presidência, não saberia dizer se Travis é um “analfabeto” político. Me parece preconceituoso não considerá-lo alguém crítico só por ter a visão do senso comum, do cidadão médio que tem na fala preconceitos e não entende a complexidade dos problemas, acreditando em soluções simplistas para tal (o famoso espectador de telejornais como o do Datena). Diria que ele é um reacionário, um “revolucionário ao contrário” que se insurge para a manutenção da ordem. Na cena em que o candidato lhe pergunta o que ele mudaria na sociedade, e afirma que “algo tem que ser feito para limpar a sociedade”, arranca suspiros não só do político que fecha a expressão, mas do espectador que vê nisso o germe do que foi o fascismo talvez. Assim como os totalitários do passado, o discurso moralista sempre foi a base das tiranias, em nome do que for, seja da liberdade, igualdade, democracia ou da lei e a ordem, tudo é válido para a garantia destes. Travis se torna um apoiador do candidato cegamente, sem nem mesmo ter muita noção das propostas e do discurso de retórica do político, facilmente comprado pela sua militância contagiada pelas máximas de efeito.

A escolha de vários planos em vermelho no filme, das luzes de neon às manchas de sangue em destaque durante as cenas violentas, não foi por acaso. O vermelho da um sentido de revolta, por isso sempre esteve nas bandeiras revolucionárias, também denota o submundo. Em vários planos do filme eu ao assistir a cidade grande retratada, me lembrei do Largo do Arouche no centro de São Paulo, a decadência de edifícios ocupados e invadidos, os letreiros de meretrícios e a prostituição na rua a todo momento.

A “evolução” de Travis é algo notório também. Sua feição muda drasticamente, e isso devemos à bela atuação de Robert De Niro. Sua radicalização se dá quando conhece a jovem Iris (Jodie Foster), uma prostituta menor de idade que lhe sensibiliza, então decide fazer justiça com as próprias mãos para salvá-la.

Enfim, o filme talvez seja o precursor dessa temática de “homens de bem”, pessoas comuns que se rebelam contra o sistema. Outro clássico é o “Um Dia de Fúria” com Michael Douglas. A famosa cena de Travis com o moicano imitando uma arma com a mão cheia de sangue talvez faça uma referência à cultura punk ou skinhead, muito em alta na época, principalmente através de outras obras do cinema como “Laranja Mecânica” de Stanley Kubrick.

Poderíamos fazer uma lista sem fim dos conceitos sociológicos que o filme implica, mas como entretenimento é uma ótima peça de arte também. Fica a recomendação.


quinta-feira, 3 de novembro de 2022

The Sunset Limited

 Por: David Vega



Baseado na peça de Cormac McCarthy, Sunset Limited é um filme de 2011 basicamente fundamentado e sustentado em um diálogo. Os recursos visuais e de câmera captam expressões e detalhes do ambiente; um apartamento no subúrbio de alguma cidade grande onde se passa a história.

Após tentar um suicídio atirando-se na linha do metrô chamada Sunset Limited, um professor (Tommy Lee Jones) é salvo por um homem negro (Samuel L. Jackson) operário que o leva para seu recinto e inicia-se o filme com o questionamento sobre sua real intenção de suicidar-se. Ao longo do filme, diversas questões existenciais vão surgindo. O homem negro é dotado de uma fé cristã, enquanto o professor é esvaziado de qualquer crença, e a peça mostra bem o embate daqueles que já não veem significados e propósitos maiores frente os que mesmo diante de toda a miséria humana, no caso do operário, vivendo em uma periferia, rodeado do que ele próprio chama de “junkies”, os “nóias” que roubam frequentemente suas coisas dentro de casa e toda a decadência de um local abandonado pelo poder público, ainda assim, consegue ver motivos de sobra para continuar em frente.

O personagem de Samuel L. Jackson em certo momento conta que já esteve preso, e a rotina da cadeia. Foi após um incidente de violência em que quase matou um detento que teve a sua conversão. O professor questiona a Deus o fato de ter aparecido para a aceitação de Jesus a um homem violento ao invés da própria vítima do episódio que ficou inválida. Aquele velho operário insiste ao professor que viver continua valendo a pena, pergunta-lhe quantos livros ele já leu na vida, reparando que seu vocabulário é erudito. O professor responde que lia em média dois livros por semana, multiplicado por 40 anos, milhares de obras já entraram para o repertório do velho, mas o homem negro então indaga: “O senhor já leu milhares de livros mas nunca leu a bíblia?”. Querendo saber qual seria seu livro favorito, ele responde que talvez o “Guerra e Paz” (do Tolstoi), constatando que é uma ficção com verossimilhança, o professor pensa o mesmo do livro sagrado, sendo a bíblia também uma invenção. O discurso científico se choca com o da fé filosófico e o filme mostra a que veio nas brilhantes passagens existencialistas entre a sustentação do argumento de um contra o do outro, que o tenta convencer.

O mundo esvaziado de sentido e bondade para o professor o fez decidir tentar acabar com a sua própria vida, sem mais significado. Ele afirma em uma passagem que o declínio da civilização ocidental se deu por séculos, até ter o seu fim, o apocalíptico desfecho nas chaminés de Dachau (campo de concentração nazista) – Lembrei-me do Adorno, ao falar que o mundo não seria o mesmo após Auschwitz. Tudo o que ele amou um dia; as culturas, o conhecimento, as letras etc, já não tinham mais propósito, pois eram crenças fracas, diferente da fé do homem negro que tenta convencê-lo.

Outra passagem interessante é quando o professor afirma que a bíblia aponta centenas de caminhos ao qual não devemos seguir, as escolhas erradas, mas apenas um caminho que seria a salvação, em Cristo. Na visão do velho acadêmico, seria uma prepotência impor uma única verdade e salvação, em um mundo tão dispare com diversas óticas e situações distintas.

O esforço do velho operário negro começa a trazer argumentações religiosas e uma certa limitação se comparado com o conhecimento cientifico e antropológico do professor, que parece sempre vencer a cada tentativa de convencimento do operário. Assustado com tamanha visão niilista do professor, já quase sem argumentações convincentes, o velho operário começa a desesperar-se sem entender a lógica e cosmovisão de seu oponente, e apela à reza, à oração, sem entender como Deus pôde permitir que um de seus filhos chegasse a tal “fundo do poço” sem a vontade de viver, naquela situação, querendo interromper a própria vida.

Há uma cena em que o professor deitado no sofá, parece que está no divã de uma sessão de análise, e o homem negro avalia seu relato. A escolha dos personagens não é por acaso. Um negro e um branco, para metaforizar que as coisas não são “preto” e “branco”, não necessariamente as coisas complexas mundanas e da vida se dão por binômios, pela dialética de síntese e antítese – há uma vastidão de pormenores e subcategorias que ou anulam ou tornam a visão hegeliana das coisas obsoleta.



Bem, não vou dar mais spoilers. Tanto a peça de teatro, que foi um grande sucesso, quanto o filme, produzido pelo próprio Tommy Lee Jones, valem a pena. The Sunset Limited nos escancara o perigo de uma vida sem sentido, e seja este religioso ou qualquer outro, um mínimo de significado precisamos ter para continuar seguindo em frente, principalmente em um mundo cruel competitivo onde os valores são o do mais forte, a trapaça reina, feito um darwinismo acentuado onde o sofrimento, que de acordo com o professor, é o que mais nos define (nessa passagem me lembrei de Miguel de Unamuno, “O Sentimento Trágico da Vida”) é a base de tudo. Estamos todos fadados ao sofrimento, mas nossa racionalidade ao menos nos permite fazer algo quanto a isso.

domingo, 30 de outubro de 2022

O Círculo de Poder

 Por: David Vega



Dica de filme. Contém Spoiler! “O Círculo do Poder” (The Inner Circle), filme de 1991 dirigido por Andrei Konchalovsky que conta a história em tons biográficos de um jovem projetista de cinema chamado Ivan Sanshin, recém casado, que acaba por ser chamado para integrar a equipe de elite na antiga URSS e projetar filmes para o líder Josef Stalin em pessoa. O filme fala que ele faria parte da KGB, mas por se passar antes e durante a Segunda Guerra Mundial, o serviço secreto russo ainda seria o NKVD, sendo a KGB fundada apenas em 1954. Talvez no filme utilizaram as siglas por serem mais populares entre o público leigo, independente de qualquer coisa, o filme é uma obra prima.

Ao ser chamado para passar os rolos de filmes estilo Super 8 para a diversão do líder de aço e seu círculo íntimo de camaradas, alguns até companheiros da revolução de 1917, destaco o personagem de Lavrenti Beria, interpretado por Bob Hoskins, que curiosamente fez o papel de Nikita Khrushchov no filme “Círculo de Fogo” sobre a batalha de Stalingrado.

Ivan, deslumbrado com seu novo emprego e por se aproximar do grande líder do país, passa a ficar cego às arbitrariedades do regime. Ele se torna um privilegiado em um país onde a população amargava e era faminta, seu soldo é acima da média, ganha um cartão corporativo que lhe permite trocar por caviar, chocolates e conhaques, então, embebido pelo cargo, se sente um “real representante do proletariado”. A obra, a partir de então, mostra as perseguições na época dos expurgos stalinistas. Pessoas ao redor de Ivan são presas e muitas além de condenadas à Sibéria para trabalhos forçados, acabam por ser executadas ou se suicidarem para evitar o sofrimento. O primeiro a ser tombado pela tirania stalinista é seu vizinho Gubelman. A NKVD (KGB) invade seu apartamento e encontra artigos estrangeiros, brinquedos e objetos do mundo ocidental, por isso forjam a justificativa para condená-lo (o curioso é que mostra Stalin e seus asseclas assistindo filmes ocidentais, do Chaplin, faroestes estadunidenses etc, ou seja, para eles era permitido tais regalias, para o povo, o controle total do Estado).

O suposto “dissidente” é apenas um dentre muitos categorizados como “subversivos” e então tenta suicídio batendo a cabeça na parede e formando uma mancha de sangue em sua sala. Ao ser levado, deixa uma esposa, que logo também é acusada, e sua filha, Katya, ainda criança, levada a um orfanato do Estado para ser criada pelo regime e doutrinada. A esposa de Ivan, Anastasia, pela proximidade com a menina, quer adotá-la, mas por medo de represálias e ser confundido como parente de uma família de “traidores”, Ivan Sanshin não permite e entrega a criança ao orfanato. O filme a partir de então escancara a paranoia de Stalin em querer encontrar traidores, tendo Ivan um comportamento ambíguo, ao mesmo tempo que ama o “camarada Stalin”, morre de medo dele, fazendo valer a máxima de Maquiavel: “é melhor ser temido do que amado”, mas neste caso, ama e teme o líder de aço.

Anastasia, consumida por um desejo materno, vai em busca de Katya se voluntariando para o trabalho de tutora no orfanato. Essa cena chama bastante a atenção, pois quando chega lá, diversas crianças que tiveram seus pais condenados, sendo criadas pelo Estado, tem as cabeças raspadas, vestem um mesmo uniforme e nessa passagem, uma das professoras em uma aula, menciona o exemplo de Pavlik, lenda na URSS que contava a história do garoto que denunciou os próprios pais ao regime por serem traidores. O ato de “heroísmo” daqueles que entregavam uma esposa, um pai, um irmão ou um vizinho para o camarada Stalin era tido como “patriotismo”. Então surge a sigla MFTP (Membros de Famílias Traidoras da Pátria), e esses, ao serem criados com uma lavagem cerebral para adorarem seu líder, poucas chances tinham na vida. Semelhante prática ainda ocorre na Coréia do Norte, onde qualquer membro ou descendência de um traidor, é considerado um subversivo em potencial, e é punido, mesmo que não tenha nada a ver com o ato de traição, paga pela atitude de um parente por ser do mesmo sangue.

O Círculo do Poder em volta de Stalin mostra seu lado mais sombrio. Ivan presencia uma cena em que quase mandam um técnico ao Kulak por apenas cometer um erro de uma peça do projetor em um dia que o líder queria assistir a um filme. Cegamente, ele passa a ficar cada vez mais fanático, ao ponto de concordar com os expurgos, mesmo estes sendo de antigos vizinhos e amigos. Seus privilégios aumentam, ele ganha o direito de morar em um apartamento maior, que era o da família Gubelman. Antes, moravam nos fundos de uma antiga propriedade de uma senhora, que aparece no filme como uma velha descontente do regime, uma vez que era proprietária do edifício, e os moradores a chamam de “opressora” dos tempos de outrora (possivelmente ela arrendava ou alugava os apartamentos), dizem que ela explorava o povo e agora, coletivizada as suas propriedades, ela era mais uma moradora como os demais no prédio que um dia foi seu.

Ivan não sabe que sua esposa se encontra com Katya, até que é cobrado por um comissário político a entregar ele também subversivos, uma delas seria talvez sua própria esposa. Ao iniciar a Operação Barbarossa, a invasão da URSS pelos nazistas, os membros do Kremlin vão ao interior. A cena da mudança se passa em um trem, e nela mostra Beria, sujeito próximo de Stalin, assediando a esposa de Ivan. O jovem idealista percebe que sua esposa foi violentada pelo “camarada” oficial e nada pode fazer. Porém a lavagem cerebral é tamanha, que ele se sente orgulhoso em saber que sua esposa está servindo aos camaradas líderes. O filme mostra esse lado do jovem de servidão cega, pondo a esposa em questão, e seu lado humano que se manifesta com raiva em saber que é obrigado cedê-la ao círculo de poder. Enfim, ele é afastado da própria esposa, e não pode reclamar, pois isso seria traição.

Anos se passam e Anastasia, que leva o nome da filha do antigo Czar, volta para Ivan, grávida. Ela mesma não sabe quem pode ser o pai da criança, e revoltado, mas ao mesmo tempo submisso, Ivan a aceita de volta. O filme mostra Ivan como um sujeito inocente, mas de bom coração, que serve ao seu líder beirando um fanatismo que lhe mostra como um idiotizado. A idolatria o faz até ter a imagem e o busto do líder de aço em sua casa. Assim como ele, boa parte da população venerava o “pai” da nação dessa forma. Revoltada em saber que Ivan ama mais o camarada Stalin do que ela própria, mesmo após ter sido entregue a favores sexuais contra a sua vontade, Anastasia, sem poder estar próxima de Katya, se suicida. A vida de Ivan é totalmente destruída por conta do regime, ele perde tudo o que teve um dia, mas ainda assim, continua adorando os líderes de sua nação.



O filme nos mostra o quão cruel os regimes de exceção são, principalmente aqueles que vieram através de revoluções que prometeram um paraíso na Terra, o bem estar e saúde de um povo, que tão logo tornou-se vítima de déspotas que viviam cercados de privilégios, a classe dirigente, esquecendo-se de onde vieram e voltando-se contra sua própria população, fazendo valer o “triunfo dos porcos” de Orwell, bem como também nos mostra o aparato de Estado opressor totalitário que faz o cidadão comum viver em um estado de permanente tensão, onde tudo o que é dito pode ter alguém escutando e delatando.

Por fim, o filme no seu desfecho traz um reencontro de Ivan com Katya, a menina percebe que ele está morando na sua antiga casa devido a mancha de sangue na parede, mas ela também está manipulada devido a lavagem cerebral no orfanato de reeducação. Agora com 17 anos, ela diz não ter muita oportunidade na vida, por ser judia e filha de antigos subversivos. Cansado, Ivan começa a pensar sobre sua devoção cega ao camarada Stalin, até que o mesmo falece em 1953, gerando uma comoção no país. Mostram seu cadáver embalsamado, assim como ainda mantém o de Lenin, escancarando essa ideia de devoção inata do povo russo, antes a um Czar, depois por Lenin, e agora por líderes que só os oprimiram. A cena final retrata as passeatas de multidões fanáticas querendo se aproximar do corpo do “pai” da nação, muitas pessoas foram pisoteadas e mortas (isso é fato verídico) cerca de 1500 pessoas morreram durante essa comoção insensata da população. Ivan encontra Katya na multidão e a salva, dizendo que cuidaria dela a partir de então.

O filme é baseado em um relato verídico, a URSS, assim como a China maoísta, foram regimes totalitários que só se mostraram como os mais perversos, e se a História condenou o nazismo, ainda falta condenar o comunismo que assolou esses países para se fazer uma justiça histórica. Em tempos de populismos à direita ou à esquerda no Brasil e no mundo esse filme se torna educativo para entendermos que não existem salvadores, o caráter messiânico de líderes não faz bem ao espírito democrático, seja em qual espectro for, e canalhas são os que manipulam o povo como caudilhos ou “pais” de toda uma nação.

segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Sócrates, de Roberto Rossellini

 



Dica de filme: “Sócrates”, do célebre diretor italiano que marcou o realismo, Roberto Rossellini. Nesta obra, somos presenteados com uma trajetória do filósofo que foi um divisor de águas para a instituição do pensar (dividindo seus predecessores em pré-Socráticos, do final do século VII  até o V a.C), o filme mostra seu exercício cotidiano de relativizar e buscar conceitos universais para os termos, até sua condenação e morte por envenenamento de cicuta. Sócrates havia sido um cidadão exemplar, condecorado por bravura na Guerra do Peloponeso, defendendo a democracia ateniense contra a tirania de Esparta, após seu regresso do conflito, já com idade mais avançada, decidiu que viveria entre a massa, ao contrário dos sofistas (que tanto combatia) dos quais ganhavam a vida ensinando retórica e discursos políticos (feito os comentaristas e palestrantes de hoje), ele preferia a vida de um avarento, não ligava para os bens materiais e a riqueza, andava feito um mendigo, considerado subversivo pelas autoridades, “corrompendo” a juventude com seu exercício de maiêutica e profanando contra os deuses do Olímpio (os quais não acreditava e era bem cético). A “maiêutica” é um termo que vem de “parir”, sua mãe, havia sido obstetra, e ele considerava que seu questionamento e relativização do logos, não deixavam de ser igual ao parto, trazendo à luz para o interlocutor a dúvida quanto ao conceito por ele previamente axiomático. 

No filme aparecem alguns de seus seguidores, Platão é apenas mencionado (Sócrates nunca deixou nada escrito, o que sabemos dele é uma idealização de Platão, em seus diálogos), Xenofonte também não tem um protagonismo como merecia. Rossellini é bem fiel aos diálogos de Platão, quando se menciona inclusive o sofista Protágoras, ou quando ele discute com Hípias e Críton acerca de alguns temas. Na passagem deste primeiro, ao encontrar o sofista com vestes nobres e escravos que o conduziam, Sócrates indaga o que seria a “beleza”, o pomposo opulento responde que seria uma bela virgem, então Sócrates concorda com ele, mas pergunta se uma égua também não pode ser bela, o sofista concorda, então continua, questionando se uma panela também não pode ser bela, “por suposto que sim”, diz seu oponente, então o mestre conclui: “A égua é bela, mas não se comparada à virgem, assim como uma panela pode ser bela, mas não se comparada às duas primeiras, bem como a virgem é bela, mas não comparada aos deuses, então, o que é a beleza?” – o sofista fica sem resposta e se despede com pressa. 

Para Sócrates, não bastava dar um exemplo reducionista do que era cada conceito, a “beleza”, a “justiça”, a “verdade” etc, estes deveriam ser universais, e eu digo ainda mais, são conceitos que estão em si mesmos (sem uma universalidade, mas existem e o são e cada microcosmo)! Para o grande mestre, o verdadeiro filósofo tinha apenas uma única certeza, a sua ignorância, e no filme pronuncia mais de uma vez sua célebre frase “Só sei, que nada sei”. Sócrates foi um legalista, até em sua condenação se recusou a fugir, quando Críton o propôs, dizendo que ele era um condenado e se fugisse, estaria descumprindo a lei, e isso seria a injustiça, mais do que a sua própria condenação, ele preferiu morrer a reconhecer que não estava certo, contrariando muitos que lhe suplicaram para que voltasse atrás. Uma passagem interessante, é quando ele diz que para se conduzir um barco, não escolhemos por sorteio (na época as eleições eram por sorteio) o condutor do barco, nem mesmo escolhemos por sorteio um médico, preferimos profissionais que estejam aptos para essas funções, assim como deveria ser a Política, por que escolher por sorteio e não por alguém com aptidão? Essa ideia foi cultuada por seu discípulo, Platão, no livro “A República”, onde dizia que uma sociedade deveria ser conduzida por filósofos, na verdade, ele errou nesta questão a meu ver, pois os governos mais despóticos ao longo da História, foram de ideólogos ou ideologias que rejeitavam o pragmatismo e o tecnicismo da democracia, em nome de um mundo perfeito. Enfim, recomendo o filme, essencial para quem é fã de Filosofia! Rossellini fez uma série, durante os anos 1970 (da qual esse filme é o precursor) da vida de alguns filósofos, ainda tem sobre Santo Agostinho, Descartes e Pascal. Fica bem claro que o diretor conhecia as obras e vida destes autores, uma pena o Cinema de hoje ter perdido essa erudição tão educativa!

Leões e Cordeiros (Lions for Lambs)

 Por: David Vega Leões e Cordeiros (Lions for Lambs), filme de 2007 que faz um retrato da política externa americana. Lembro-me de ter ouvid...