domingo, 30 de outubro de 2022

O Círculo de Poder

 Por: David Vega



Dica de filme. Contém Spoiler! “O Círculo do Poder” (The Inner Circle), filme de 1991 dirigido por Andrei Konchalovsky que conta a história em tons biográficos de um jovem projetista de cinema chamado Ivan Sanshin, recém casado, que acaba por ser chamado para integrar a equipe de elite na antiga URSS e projetar filmes para o líder Josef Stalin em pessoa. O filme fala que ele faria parte da KGB, mas por se passar antes e durante a Segunda Guerra Mundial, o serviço secreto russo ainda seria o NKVD, sendo a KGB fundada apenas em 1954. Talvez no filme utilizaram as siglas por serem mais populares entre o público leigo, independente de qualquer coisa, o filme é uma obra prima.

Ao ser chamado para passar os rolos de filmes estilo Super 8 para a diversão do líder de aço e seu círculo íntimo de camaradas, alguns até companheiros da revolução de 1917, destaco o personagem de Lavrenti Beria, interpretado por Bob Hoskins, que curiosamente fez o papel de Nikita Khrushchov no filme “Círculo de Fogo” sobre a batalha de Stalingrado.

Ivan, deslumbrado com seu novo emprego e por se aproximar do grande líder do país, passa a ficar cego às arbitrariedades do regime. Ele se torna um privilegiado em um país onde a população amargava e era faminta, seu soldo é acima da média, ganha um cartão corporativo que lhe permite trocar por caviar, chocolates e conhaques, então, embebido pelo cargo, se sente um “real representante do proletariado”. A obra, a partir de então, mostra as perseguições na época dos expurgos stalinistas. Pessoas ao redor de Ivan são presas e muitas além de condenadas à Sibéria para trabalhos forçados, acabam por ser executadas ou se suicidarem para evitar o sofrimento. O primeiro a ser tombado pela tirania stalinista é seu vizinho Gubelman. A NKVD (KGB) invade seu apartamento e encontra artigos estrangeiros, brinquedos e objetos do mundo ocidental, por isso forjam a justificativa para condená-lo (o curioso é que mostra Stalin e seus asseclas assistindo filmes ocidentais, do Chaplin, faroestes estadunidenses etc, ou seja, para eles era permitido tais regalias, para o povo, o controle total do Estado).

O suposto “dissidente” é apenas um dentre muitos categorizados como “subversivos” e então tenta suicídio batendo a cabeça na parede e formando uma mancha de sangue em sua sala. Ao ser levado, deixa uma esposa, que logo também é acusada, e sua filha, Katya, ainda criança, levada a um orfanato do Estado para ser criada pelo regime e doutrinada. A esposa de Ivan, Anastasia, pela proximidade com a menina, quer adotá-la, mas por medo de represálias e ser confundido como parente de uma família de “traidores”, Ivan Sanshin não permite e entrega a criança ao orfanato. O filme a partir de então escancara a paranoia de Stalin em querer encontrar traidores, tendo Ivan um comportamento ambíguo, ao mesmo tempo que ama o “camarada Stalin”, morre de medo dele, fazendo valer a máxima de Maquiavel: “é melhor ser temido do que amado”, mas neste caso, ama e teme o líder de aço.

Anastasia, consumida por um desejo materno, vai em busca de Katya se voluntariando para o trabalho de tutora no orfanato. Essa cena chama bastante a atenção, pois quando chega lá, diversas crianças que tiveram seus pais condenados, sendo criadas pelo Estado, tem as cabeças raspadas, vestem um mesmo uniforme e nessa passagem, uma das professoras em uma aula, menciona o exemplo de Pavlik, lenda na URSS que contava a história do garoto que denunciou os próprios pais ao regime por serem traidores. O ato de “heroísmo” daqueles que entregavam uma esposa, um pai, um irmão ou um vizinho para o camarada Stalin era tido como “patriotismo”. Então surge a sigla MFTP (Membros de Famílias Traidoras da Pátria), e esses, ao serem criados com uma lavagem cerebral para adorarem seu líder, poucas chances tinham na vida. Semelhante prática ainda ocorre na Coréia do Norte, onde qualquer membro ou descendência de um traidor, é considerado um subversivo em potencial, e é punido, mesmo que não tenha nada a ver com o ato de traição, paga pela atitude de um parente por ser do mesmo sangue.

O Círculo do Poder em volta de Stalin mostra seu lado mais sombrio. Ivan presencia uma cena em que quase mandam um técnico ao Kulak por apenas cometer um erro de uma peça do projetor em um dia que o líder queria assistir a um filme. Cegamente, ele passa a ficar cada vez mais fanático, ao ponto de concordar com os expurgos, mesmo estes sendo de antigos vizinhos e amigos. Seus privilégios aumentam, ele ganha o direito de morar em um apartamento maior, que era o da família Gubelman. Antes, moravam nos fundos de uma antiga propriedade de uma senhora, que aparece no filme como uma velha descontente do regime, uma vez que era proprietária do edifício, e os moradores a chamam de “opressora” dos tempos de outrora (possivelmente ela arrendava ou alugava os apartamentos), dizem que ela explorava o povo e agora, coletivizada as suas propriedades, ela era mais uma moradora como os demais no prédio que um dia foi seu.

Ivan não sabe que sua esposa se encontra com Katya, até que é cobrado por um comissário político a entregar ele também subversivos, uma delas seria talvez sua própria esposa. Ao iniciar a Operação Barbarossa, a invasão da URSS pelos nazistas, os membros do Kremlin vão ao interior. A cena da mudança se passa em um trem, e nela mostra Beria, sujeito próximo de Stalin, assediando a esposa de Ivan. O jovem idealista percebe que sua esposa foi violentada pelo “camarada” oficial e nada pode fazer. Porém a lavagem cerebral é tamanha, que ele se sente orgulhoso em saber que sua esposa está servindo aos camaradas líderes. O filme mostra esse lado do jovem de servidão cega, pondo a esposa em questão, e seu lado humano que se manifesta com raiva em saber que é obrigado cedê-la ao círculo de poder. Enfim, ele é afastado da própria esposa, e não pode reclamar, pois isso seria traição.

Anos se passam e Anastasia, que leva o nome da filha do antigo Czar, volta para Ivan, grávida. Ela mesma não sabe quem pode ser o pai da criança, e revoltado, mas ao mesmo tempo submisso, Ivan a aceita de volta. O filme mostra Ivan como um sujeito inocente, mas de bom coração, que serve ao seu líder beirando um fanatismo que lhe mostra como um idiotizado. A idolatria o faz até ter a imagem e o busto do líder de aço em sua casa. Assim como ele, boa parte da população venerava o “pai” da nação dessa forma. Revoltada em saber que Ivan ama mais o camarada Stalin do que ela própria, mesmo após ter sido entregue a favores sexuais contra a sua vontade, Anastasia, sem poder estar próxima de Katya, se suicida. A vida de Ivan é totalmente destruída por conta do regime, ele perde tudo o que teve um dia, mas ainda assim, continua adorando os líderes de sua nação.



O filme nos mostra o quão cruel os regimes de exceção são, principalmente aqueles que vieram através de revoluções que prometeram um paraíso na Terra, o bem estar e saúde de um povo, que tão logo tornou-se vítima de déspotas que viviam cercados de privilégios, a classe dirigente, esquecendo-se de onde vieram e voltando-se contra sua própria população, fazendo valer o “triunfo dos porcos” de Orwell, bem como também nos mostra o aparato de Estado opressor totalitário que faz o cidadão comum viver em um estado de permanente tensão, onde tudo o que é dito pode ter alguém escutando e delatando.

Por fim, o filme no seu desfecho traz um reencontro de Ivan com Katya, a menina percebe que ele está morando na sua antiga casa devido a mancha de sangue na parede, mas ela também está manipulada devido a lavagem cerebral no orfanato de reeducação. Agora com 17 anos, ela diz não ter muita oportunidade na vida, por ser judia e filha de antigos subversivos. Cansado, Ivan começa a pensar sobre sua devoção cega ao camarada Stalin, até que o mesmo falece em 1953, gerando uma comoção no país. Mostram seu cadáver embalsamado, assim como ainda mantém o de Lenin, escancarando essa ideia de devoção inata do povo russo, antes a um Czar, depois por Lenin, e agora por líderes que só os oprimiram. A cena final retrata as passeatas de multidões fanáticas querendo se aproximar do corpo do “pai” da nação, muitas pessoas foram pisoteadas e mortas (isso é fato verídico) cerca de 1500 pessoas morreram durante essa comoção insensata da população. Ivan encontra Katya na multidão e a salva, dizendo que cuidaria dela a partir de então.

O filme é baseado em um relato verídico, a URSS, assim como a China maoísta, foram regimes totalitários que só se mostraram como os mais perversos, e se a História condenou o nazismo, ainda falta condenar o comunismo que assolou esses países para se fazer uma justiça histórica. Em tempos de populismos à direita ou à esquerda no Brasil e no mundo esse filme se torna educativo para entendermos que não existem salvadores, o caráter messiânico de líderes não faz bem ao espírito democrático, seja em qual espectro for, e canalhas são os que manipulam o povo como caudilhos ou “pais” de toda uma nação.

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