quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

Errementari – O Ferreiro e o Diabo

 Por: David Vega



Todo país cristão, sobretudo de tradição católica, tem a figura dualista de santo e demônio muito enraizada em sua cultura. Veja o nosso “O Auto da Compadecida” de Ariano Suassuna e tantas lendas populares, como aquelas caipiras de onde cresci no interior paulista, em que os matutos juravam um suposto encontro com o belzebu e sentido o cheiro de enxofre. Pois bem, o comentário que farei hoje é sobre um filme da santa terrinha, muito incomum, filme basco e falado na língua vascongada, dando uma identidade à lenda do qual ele se baseia, justamente daquela região da Espanha que embora é marcada por um independentismo, produziu os maiores intelectuais nacionalistas do país: “Errementari – O Ferreiro e o Diabo”, produção de 2017.

A terra de Unamuno e de Maeztu, bem como dos antepassados do nosso patrono Anchieta, sempre foi marcada pelo folclore registrado por outra grande figura basca, Pio Baroja, escritor da geração de 1898. Todos conseguem se lembrar de Garcia Lorca enquanto folclorista espanhol, mas sua produção diz respeito mais à Andaluzia, quanto à cultura basca, foi Pio Baroja que escreveu inúmeras obras registrando as lendas locais. Eu já li um livro dele sobre bruxaria (La Dama de Urtubi), e os espanhóis adoram falar de “las brujas” (yo no creo em brujas, pero que las hay, las hay – diz o dito popular) em um país que foi marcado pelo tribunal da inquisição no passado, as anedotas populares giram sempre em torno de demônios e blasfêmias que eram apontadas pela igreja católica.

A película é dirigida por Paul Urkijo Alijo e retrata a paisagem verde da Euskadi (País Vasco) que contrasta com a terra seca de uma Espanha quase que desértica e agrícola. O filme conta a história de um oficial do governo que é enviado a um pueblo (vilarejo) para investigar sobre um ferramenteiro que é suspeito de guardar um ouro da época das guerras carlistas. A lenda diz que este ferreiro chegou a enganar o diabo e era temido até pelo capiroto. A estética do filme lembra muito outro de fantasia que foi muito famoso anos atrás, “O Labirinto do Fauno” (2006) do aclamado Guillermo del Toro.

Ambientado durante e após a primeira guerra carlista (1833-1840), o filme tem leves toques históricos. O carlismo foi um movimento tradicionalista que se destacou sobretudo na região de Navarra e do próprio País Basco que não reconhecia a linhagem sucessória da rainha Isabel. O nome deriva do seu apoio à casa dos Habsburgos dos Carlos, segundo eles, a real casa monárquica da Espanha, que sofreu reformas liberais sobretudo desde a invasão de Napoleão após 1808. A guerra civil carlista se deu entre os tradicionalistas com suas boinas icônicas defensores do absolutismo, cujo lema era “Deus, pátria e rei” contra um exército constitucional que defendia reformas liberais que inclusive promoviam medidas secularistas, o que desagradava a igreja. No filme há a figura do padre da aldeia, que em um sermão ataca o novo governo constitucional na época encabeçando um movimento de oposição à igreja importando ideias liberais e apoiados pela Inglaterra, França e Portugal. Um dos soldados carlistas, faz um pacto com o diabo, e daí começa toda a trama.

É metafórica essa associação ao diabo, em uma época que a modernização representava o mal para uma igreja que visava atacar os parlamentaristas liberais, os protestantes, ateus e posteriormente, os do movimento de Riego, que chegou a proclamar a república (embora teve uma experiência breve, com os monarquistas restaurando a casa real depois). Os carlistas praticamente desapareceram depois da Guerra Civil Espanhola (1936-1939) diluídos nas facções que apoiavam o regime franquista. O ferreiro, que em basco é Errementari, se torna um homem temido e isolado na aldeia, sua figura é relacionada ao próprio demônio, mas uma menina órfã da aldeia ousa desafiar os boatos populares e se aproxima dele. Bem, não vou contar mais, seria spoiler. Vale a pena conferir.

Independente de algumas analogias à política, que eu não consigo deixar de fazer, o filme é um ótimo entretenimento, lembra muito inclusive a nossa cultura tradicional, com fantasias que parecem do carnaval, aqueles diabos vermelhos, com tridente e de rabo que via nos desfiles de rua da cidade que cresci no interior, a ideia do diabo lançada por Dante Alighieri na literatura e reproduzimos até hoje. Embora ambientado no século XIX, o filme tem uma aura medieval, e o vilarejo deles com as casas de pedra me recorda muito o pueblo onde nasceu meu pai, em Leon, que não é basco, mas tem elementos da cultura da Cantábrica na região castelhana do noroeste da Espanha.

Essa lenda basca foi registrada pelo antropólogo José Miguel de Barandiaran, que também era sacerdote. Usa elementos da cultura popular como os garbanzos (grão de bico) igual ao feijão na brasileira e o sino, objeto típico da igreja. A produção é além de espanhola, francesa, que tem uma parte de seu território reivindicado pelos bascos também, mostrando ao mundo o particularismo de uma cultura pouco conhecida, cuja identidade forte não precisa se dissociar do restante da Espanha e de toda Ibéria, aliás, uma península em que sempre vigorou a unidade na diversidade, do qual as lendas tem uma simbiose, inclusive no folclore transplantado às Américas que herdamos.

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