Por: David Vega
Todo
país cristão, sobretudo de tradição católica, tem a figura dualista de santo e
demônio muito enraizada em sua cultura. Veja o nosso “O Auto da Compadecida” de
Ariano Suassuna e tantas lendas populares, como aquelas caipiras de onde cresci
no interior paulista, em que os matutos juravam um suposto encontro com o belzebu e sentido
o cheiro de enxofre. Pois bem, o comentário que farei hoje é sobre um filme da
santa terrinha, muito incomum, filme basco e falado na língua vascongada, dando
uma identidade à lenda do qual ele se baseia, justamente daquela região da
Espanha que embora é marcada por um independentismo, produziu os maiores
intelectuais nacionalistas do país: “Errementari – O Ferreiro e o Diabo”, produção
de 2017.
A
terra de Unamuno e de Maeztu, bem como dos antepassados do nosso patrono
Anchieta, sempre foi marcada pelo folclore registrado por outra grande figura
basca, Pio Baroja, escritor da geração de 1898. Todos conseguem se lembrar de
Garcia Lorca enquanto folclorista espanhol, mas sua produção diz respeito mais
à Andaluzia, quanto à cultura basca, foi Pio Baroja que escreveu inúmeras obras
registrando as lendas locais. Eu já li um livro dele sobre bruxaria (La Dama de
Urtubi), e os espanhóis adoram falar de “las brujas” (yo no creo em brujas,
pero que las hay, las hay – diz o dito popular) em um país que foi marcado pelo
tribunal da inquisição no passado, as anedotas populares giram sempre em torno
de demônios e blasfêmias que eram apontadas pela igreja católica.
A
película é dirigida por Paul Urkijo Alijo e retrata a paisagem verde da Euskadi
(País Vasco) que contrasta com a terra seca de uma Espanha quase que desértica
e agrícola. O filme conta a história de um oficial do governo que é enviado a
um pueblo (vilarejo) para investigar sobre um ferramenteiro que é suspeito de
guardar um ouro da época das guerras carlistas. A lenda diz que este ferreiro chegou
a enganar o diabo e era temido até pelo capiroto. A estética do filme lembra
muito outro de fantasia que foi muito famoso anos atrás, “O Labirinto do Fauno”
(2006) do aclamado Guillermo del Toro.
Ambientado
durante e após a primeira guerra carlista (1833-1840), o filme tem leves toques
históricos. O carlismo foi um movimento tradicionalista que se destacou sobretudo
na região de Navarra e do próprio País Basco que não reconhecia a linhagem
sucessória da rainha Isabel. O nome deriva do seu apoio à casa dos Habsburgos
dos Carlos, segundo eles, a real casa monárquica da Espanha, que sofreu reformas
liberais sobretudo desde a invasão de Napoleão após 1808. A guerra civil
carlista se deu entre os tradicionalistas com suas boinas icônicas defensores
do absolutismo, cujo lema era “Deus, pátria e rei” contra um exército
constitucional que defendia reformas liberais que inclusive promoviam medidas
secularistas, o que desagradava a igreja. No filme há a figura do padre da
aldeia, que em um sermão ataca o novo governo constitucional na época
encabeçando um movimento de oposição à igreja importando ideias liberais e
apoiados pela Inglaterra, França e Portugal. Um dos soldados carlistas, faz um
pacto com o diabo, e daí começa toda a trama.
É
metafórica essa associação ao diabo, em uma época que a modernização representava
o mal para uma igreja que visava atacar os parlamentaristas liberais, os protestantes,
ateus e posteriormente, os do movimento de Riego, que chegou a proclamar a
república (embora teve uma experiência breve, com os monarquistas restaurando a
casa real depois). Os carlistas praticamente desapareceram depois da Guerra
Civil Espanhola (1936-1939) diluídos nas facções que apoiavam o regime
franquista. O ferreiro, que em basco é Errementari, se torna um homem temido e
isolado na aldeia, sua figura é relacionada ao próprio demônio, mas uma menina órfã
da aldeia ousa desafiar os boatos populares e se aproxima dele. Bem, não vou
contar mais, seria spoiler. Vale a pena conferir.
Independente
de algumas analogias à política, que eu não consigo deixar de fazer, o filme é
um ótimo entretenimento, lembra muito inclusive a nossa cultura tradicional,
com fantasias que parecem do carnaval, aqueles diabos vermelhos, com tridente e
de rabo que via nos desfiles de rua da cidade que cresci no interior, a ideia
do diabo lançada por Dante Alighieri na literatura e reproduzimos até hoje.
Embora ambientado no século XIX, o filme tem uma aura medieval, e o vilarejo
deles com as casas de pedra me recorda muito o pueblo onde nasceu meu pai, em
Leon, que não é basco, mas tem elementos da cultura da Cantábrica na região
castelhana do noroeste da Espanha.
Essa
lenda basca foi registrada pelo antropólogo José Miguel de Barandiaran, que
também era sacerdote. Usa elementos da cultura popular como os garbanzos (grão de bico) igual ao feijão na brasileira e o sino, objeto típico da igreja. A produção é além de espanhola, francesa, que tem uma
parte de seu território reivindicado pelos bascos também, mostrando ao mundo o
particularismo de uma cultura pouco conhecida, cuja identidade forte não
precisa se dissociar do restante da Espanha e de toda Ibéria, aliás, uma
península em que sempre vigorou a unidade na diversidade, do qual as lendas tem
uma simbiose, inclusive no folclore transplantado às Américas que herdamos.
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