Por: David Vega
Recomendação de filme:
OBS: Contém Spoiler no texto.
O
problema do idealista é que ele através da lente viciada que vê o mundo,
enxerga só o que quer ver, mesmo se o fato desmente a sua premissa
anterior, após a realidade empírica mostrar o contrário, e quando temos
veículos que permitem suas versões dos “fatos” que visam confirmar
dogmaticamente negando a verdade, ou pior, instituições que promovem isso, falsear
a História sempre será apenas uma “outra versão”, mesmo quando é incansável o
relato de milhões e suas trágicas vivências sob algum regime totalitário.
Ora,
hoje ninguém ousa questionar do holocausto, por mais que historiadores mal
intencionados tentem desconstruir o que os portões de Auschwitz nos lembram,
mas a questão não se aplica quando falamos da URSS. Muitos motivos talvez
estejam por detrás da má vontade ou simplesmente negligência dos órgãos
educacionais e acadêmicos em reconhecer demais genocídios “quando não
interessam”. Colocar a culpa na guarda pretoriana da SS matando em nome de uma
raça superior é intencionalmente mais convincente do que o mesmo feito pelas
botas dos comissários vermelhos sob a justificativa de uma sociedade
igualitária e de um futuro feliz, uma perfeição inexistente, mas que ainda
cativa muitos, inclusive grandes intelectuais, pelo pretexto da remoção das
injustiças humanas. Se mesmo após a revolução científica ainda existem pessoas
com a necessidade de crer em algo para além do
mundo terreno, no campo político os missionários de plantão precisam
depositar as esperanças em manifestos e dogmas que proporcionam um alívio de consciência
igual ao fiel que se crê com a alma salva por seguir os passos do Senhor.
Começo
o texto relatando isto, pois é o que sempre me pareceu ao ver grandes intelectuais
jogarem tudo ralo abaixo quando se comportam feito crianças mimadas que
acreditam nos heróis com super poderes fantásticos, alguns realmente assim o
fazem por ingenuidade, outros por mau caratismo mesmo. Assisti ontem a um filme
que explicita muito bem essa introdução. “Mr. Jones” ou “A Sombra de Stalin”,
filme de 2019, produção europeia, narra a história verídica de Gareth Jones, um
jornalista galês (daí faz jus ao nome) que foi quem denunciou os crimes
stalinistas enquanto o mundo ainda era seduzido pela promessa do paraíso
utópico da União Soviética, sobretudo quando tais ideias começam a ganhar
muitos adeptos após a Crise de 1929.
O
filme começa com um escritor em sua fazenda fazendo uma metáfora do que na
distante Rússia aconteceu comparando com animais, a cena inicial é de alguns
porcos comendo lavagem. Não preciso nem dizer quem é este suposto escritor, não
é? Sim! Ele mesmo! Eric Blair, mais conhecido como George Orwell. Ele narra seu
mais famoso livro, Animal Farm (A Revolução dos Bichos) em paralelo à trajetória
de Jones. O jovem jornalista está em uma mesa da edição de seu jornal quando é
ridicularizado pelos gordos, grisalhos e velhos envoltos em uma fumaça de charuto,
quando afirma que após entrevistar Hitler, recém chegado ao poder em 1933, o
mesmo nitidamente tem planos de invadir outros países da Europa, ele conversou
com o próprio Goebbels que confessou-lhe que o incêndio do Reichstag ajudou
Hitler chegar à chancelaria e concentrar poderes em suas mãos. Jones tenta
alertar os veículos de imprensa ingleses de que uma nova Grande Guerra se
avizinhava, mas ninguém o leva a sério.
Depois
de fracassar em divulgar a ameaça nazista, ele recebe outra missão, ir
para a União Soviética e tentar uma entrevista com Stalin. As coisas não vão
bem após a Crise de 1929, e ele se pergunta como que a Rússia mostra ao mundo
que está se tornando uma grande potência, se o Kremlin estava quebrado? De onde
vinha todo o dinheiro? Quem estava bancando a industrialização do país?
Então,
após uma entrevista na embaixada para conseguir um visto, e dizendo (mentindo)
que está a mando de Loyd George, Jones se depara com a arbitrariedade da
ditadura vermelha já na entrevista com a comissária que lhe questiona, ela
tenta manipulá-lo e deixa claro que ele não poderá deixar Moscou, visitar o
interior do país está proibido (igual Cuba que não permite que se saia dos
resorts do Caribe ou a Coreia do Norte que visita ao país, só com um agente do
governo monitorando para mostrar só o que interessa). O jornalista então faz
uma ligação para seu amigo Paul, que está em Moscou, durante a conversa ao
telefone, seu amigo lhe diz que descobriu algo que poderia render uma ótima
reportagem, mas a ligação é cortada, todas as chamadas à URSS tem escutas e
quando alguém fala algo contra o regime, é banido.
Jones
chega à Moscou e se hospeda no Metropol. Lá conhece um outro jornalista que
parece trabalhar para o Partido Comunista, o ganhador do prêmio Pulitzer Walter
Duranty. A toda hora no rádio a propaganda é incessante; “Este país não tinha
uma indústria de tratores, agora temos! Não fabricava seus próprios tanques,
agora fabrica! etc” (me lembrou o discurso despótico, seja de qual espectro for
o líder, que sempre divide o país entre o “antes” e o “agora”, uma espécie de “ano
zero”, ou frases populares e populistas como “nunca antes na História desse
país”). Ele fala à recepcionista do hotel, esta mais parece uma policial, que
tem permissão para ficar uma semana, mas ela alega que só pode ficar dois dias.
O
filme mostra Duranty como um homossexual pervertido e corrupto, confesso que é
caricata a imagem de uma forma proposital, e é claro, o filme desde o início
toma seu partido em criticar a URSS, mas é baseado em eventos reais, como a
denúncia do holodomor, que muitos ainda hoje fazem vista grossa ou não querem
reconhecer, sem nenhuma instituição punir quando se falseia a História, igual
fazem quando se nega o holocausto. Enfim, independente dos recursos usados pelo
roteirista, muitos dos elementos da película são inspirados em relatos de
sobreviventes dos campos de fome da Ucrânia. Eu mesmo me lembrei do meu primo
de batismo, afilhado da minha mãe, que morava no final da rua e brincávamos
quando éramos crianças, cujo bisavô deixou a Ucrânia fugindo da fome e foi
viver na Alemanha nazista, lá, era chamado de Hans (seu real nome era Ivan) e
quando começou a guerra veio ao Brasil. Nunca me esqueço de seus relatos da
vida após a coletivização de seu país, e o filme é bem fiel às coisas que ouvi
de sua boca.
Jones
conhece uma bela moça que é jornalista também, Ada, quando saem para o quarto
de hotel, ele pergunta quem era o homem que estava com ela. A mesma responde “Esse
é o meu Big Brother” (agente russo que ficava seguindo eles) – talvez uma
alusão ao próprio livro 1984 do Orwell. Ambos querem conversar sobre a
tentativa de ir à Ucrânia para fazer uma reportagem, mas precisam aumentar o
som da vitrola para poder falar disso, pois o agente russo fica ouvindo tudo o
que eles falam atrás da porta. Recebem a notícia de que o amigo de Jones, Paul,
foi morto. Dizem ser um “assalto”, mas desconfiam de que foi morto pelo
governo, pois ele sabia de coisas que não eram para serem ditas. Outra passagem
interessante, é quando ele menciona o nome do livro “A Máscara da Morte Rubra”
de Edgard Allan Poe, fazendo uma menção à cor vermelha.
Naqueles
idos de 1933, o orgulho da URSS eram os grãos. Os hotéis sempre falam que estão
lotados para impedir que eles se hospedem, então Jones suborna sempre com
libras para conseguir estada, que deveriam valer muito no país. Um diálogo que
ressalto também é quando Ada fala que na História há ciclos, e agora seria a
vez do mundo ver a real mudança através do comunismo. Ela crê no ideal, mesmo
quando no filme começa a aparecer quem era realmente o Stalin, ela ainda nega,
dizendo que o ideal é muito maior do que Stalin (parece os argumentos desse
pessoal ainda hoje). Sendo assim, Jones fala: “como pode defender isso mesmo após ver
seu amigo Paul com quatro tiros nas costas?”. Ao longo do filme, Ada começa a
rever sua crença, embora algo dentro dela negue, a quantidade de arbitrariedades
é tão grande ao ver a realidade do regime, que ela começa a se convencer aos
poucos de que aquilo é uma insanidade (processo que também ocorreu com Orwell e
tantos outros, apesar de alguns ainda insistirem). Jones acredita na profissão
de jornalista, também é idealista, e quer mostrar a verdade para o mundo,
então, mentindo ao comissário do partido ao qual está encarregado, consegue uma
permissão para ir à Ucrânia (ele fala russo também), mas para a viagem terá um “guia”
que o vigiará até enquanto dorme. Em um diálogo com o comissário político, o
mesmo degustando um leitão, em uma mesa cheia de frutas, lagosta e vodca, diz
que vivem no paraíso, o partido toma conta de tudo, os seus membros tem uma ótima
comida, são servidos melhor do que a aristocracia nos tempos do czar e o povo
pode ir ao cinema de graça. Desconfiado, Jones consegue dribrá-lo depois do
mesmo cair no sono depois de tanta vodca e adentra a um outro vagão, lá, vê uma
realidade muito diferente.
Um
amontoado de pessoas com roupas de trapos o olha assustadas, ele tira uma maçã de seu embornal e um garoto diz “olha, comida!”. Jones deixa cair a maçã mordida
ao solo e todos começam a se matar para pegá-la. Ele pergunta a um homem ao seu
lado se ele não venderia seu casaco, pois quer se passar por camponês, e o
mesmo diz que dinheiro ali não vale nada, que se ele tivesse um pedaço de pão
para trocar seria muito melhor. O filme a partir daí, aborda uma mancha que os
comunistas custam em reconhecer; o holodomor, a morte por inanição de milhões
de ucranianos que sofreram com a coletivização forçada e foram condenados à fome
e ao frio.
Quando
ele desce do trem, se depara constantemente com pessoas mortas ao solo, as
câmeras realçam a chuva de grãos caindo nos vagões, mas a população não pode
chegar perto, quem se aproxima é executado. “Para onde estão enviando estes
grãos” – ele pergunta, um velho lhe responde que é para Moscou. Hoje se sabe
que Stalin estava exportando os grãos para o ocidente para montar a sua
indústria bélica, deixando o povo famélico perecer em nome de suas pretensões militaristas.
Gareth Jones foi o jornalista que revelou ao mundo o que havia por detrás do “paraíso
soviético” utópico, o ocidente custou em acreditar, diversos intelectuais e
artistas relutaram em aceitar, mas a História provou a verdade, muito embora eu
ainda acho que só não denunciam com mais afinco devido o armamento atômico da Rússia
e o fato de quase toda a Europa ser dependente do gás russo.
A
Ucrânia era conhecida como a região da terra negra fértil que poderia alimentar
o mundo, e veja só, foi o local onde houve mais fome! Em uma cena marcante,
quando uma multidão disputava um pedaço de pão, ele escuta de uma ucraniana: “eles
estão nos matando! Os homens vieram aqui e pensaram que podiam acabar com as
leis naturais, deu nisso!” – Na hora me lembrei do “Tratado de Natureza Humana”
do David Hume, e o quão é tirânico um regime que visa desrespeitá-lo. No mundo
todo na época se dizia que a fome na URSS era rumor (igual os defensores cegos
falam hoje), que as fazendas coletivas funcionavam, que os camponeses eram
felizes. Mas a mesma personagem lhe diz espantada vendo toda aquela desgraça: “A
União Soviética não é o paraíso dos trabalhadores! A sociedade igualitária é
igual a de seu país capitalista, só que muito pior! Os que usufruem dos
benefícios, dos serviços públicos do Estado, é só a minoria ligada ao partido.
Stalin não é o homem que você pensa!”.
Talvez
a cena ápice do filme é quando ele encontra crianças que estão comendo algum tipo
de carne, e faminto, se serve dela também, mas ao perguntar de onde vem, ele
descobre que estão comendo os cadáveres. Realmente isso foi verídico, o bisavô
do meu amigo Ivan disse que havia relatos de canibalismo, além da História ter
documentado e comprovado.
Passado
um tempo ele volta à Inglaterra e não consegue deixar de reparar na abundância
de comida e produtos nas prateleiras, isso mesmo eles passando ainda os efeitos
da crise de 1929. Jones se torna um ostracizado, todos começam a fazer chacota
dele e de sua “versão” (o que ele viu com os próprios olhos) da URSS. Perde seu
emprego no jornal, e o pior, a situação se agrava depois que os EUA reconhecem o
regime da URSS (isso foi antes da Guerra Fria, é óbvio, até mesmo depois da
aliança na Segunda Guerra Mundial, o Stalin era chamado de Uncle Joe
carinhosamente na América). O que salva Jones é que ele consegue convencer o magnata
das comunicações William Randolph Hearst a publicar sua versão, daí por conta
da legitimidade e prestígio de seu jornal, o mundo se convence do que ocorria para
além de Moscou, embora o regime sempre continuou negando e até hoje tem gente
que não quer reconhecer (parecido com o genocídio armênio que nunca se fala
sobre). Quanto ao Pulitzer, Duranty, hoje é sabido que colaborou com o genocídio dos ucranianos
pois sabia do que acontecia e nunca fez nada, seu prêmio nunca foi revogado.
Jones morreu enquanto fazia uma reportagem na Mongólia, por agentes soviéticos.
Cerca de 10 milhões de ucranianos morreram na coletivização (número maior que
do holocausto).
O
filme não retratou muito o Orwell mudando de ideia, mas deixa claro através do
exemplo das mesas fartas com comissários do partido vestindo fraque e assistindo
ao balé de Bolshoi com seus charutos enquanto o povo se matava por um pedaço de
pão e cometia canibalismo para viver, de que na fazenda animal “alguns animais
são mais iguais que outros”.
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