segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

A Sombra de Stalin (Mr. Jones)

 Por: David Vega

Recomendação de filme: OBS: Contém Spoiler no texto.



O problema do idealista é que ele através da lente viciada que vê o mundo, enxerga só o que quer ver, mesmo se o fato desmente a sua premissa anterior, após a realidade empírica mostrar o contrário, e quando temos veículos que permitem suas versões dos “fatos” que visam confirmar dogmaticamente negando a verdade, ou pior, instituições que promovem isso, falsear a História sempre será apenas uma “outra versão”, mesmo quando é incansável o relato de milhões e suas trágicas vivências sob algum regime totalitário.

Ora, hoje ninguém ousa questionar do holocausto, por mais que historiadores mal intencionados tentem desconstruir o que os portões de Auschwitz nos lembram, mas a questão não se aplica quando falamos da URSS. Muitos motivos talvez estejam por detrás da má vontade ou simplesmente negligência dos órgãos educacionais e acadêmicos em reconhecer demais genocídios “quando não interessam”. Colocar a culpa na guarda pretoriana da SS matando em nome de uma raça superior é intencionalmente mais convincente do que o mesmo feito pelas botas dos comissários vermelhos sob a justificativa de uma sociedade igualitária e de um futuro feliz, uma perfeição inexistente, mas que ainda cativa muitos, inclusive grandes intelectuais, pelo pretexto da remoção das injustiças humanas. Se mesmo após a revolução científica ainda existem pessoas com a necessidade de crer em algo para além do  mundo terreno, no campo político os missionários de plantão precisam depositar as esperanças em manifestos e dogmas que proporcionam um alívio de consciência igual ao fiel que se crê com a alma salva por seguir os passos do Senhor.

Começo o texto relatando isto, pois é o que sempre me pareceu ao ver grandes intelectuais jogarem tudo ralo abaixo quando se comportam feito crianças mimadas que acreditam nos heróis com super poderes fantásticos, alguns realmente assim o fazem por ingenuidade, outros por mau caratismo mesmo. Assisti ontem a um filme que explicita muito bem essa introdução. “Mr. Jones” ou “A Sombra de Stalin”, filme de 2019, produção europeia, narra a história verídica de Gareth Jones, um jornalista galês (daí faz jus ao nome) que foi quem denunciou os crimes stalinistas enquanto o mundo ainda era seduzido pela promessa do paraíso utópico da União Soviética, sobretudo quando tais ideias começam a ganhar muitos adeptos após a Crise de 1929.

O filme começa com um escritor em sua fazenda fazendo uma metáfora do que na distante Rússia aconteceu comparando com animais, a cena inicial é de alguns porcos comendo lavagem. Não preciso nem dizer quem é este suposto escritor, não é? Sim! Ele mesmo! Eric Blair, mais conhecido como George Orwell. Ele narra seu mais famoso livro, Animal Farm (A Revolução dos Bichos) em paralelo à trajetória de Jones. O jovem jornalista está em uma mesa da edição de seu jornal quando é ridicularizado pelos gordos, grisalhos e velhos envoltos em uma fumaça de charuto, quando afirma que após entrevistar Hitler, recém chegado ao poder em 1933, o mesmo nitidamente tem planos de invadir outros países da Europa, ele conversou com o próprio Goebbels que confessou-lhe que o incêndio do Reichstag ajudou Hitler chegar à chancelaria e concentrar poderes em suas mãos. Jones tenta alertar os veículos de imprensa ingleses de que uma nova Grande Guerra se avizinhava, mas ninguém o leva a sério.

Depois de fracassar em divulgar a ameaça nazista, ele recebe outra missão, ir para a União Soviética e tentar uma entrevista com Stalin. As coisas não vão bem após a Crise de 1929, e ele se pergunta como que a Rússia mostra ao mundo que está se tornando uma grande potência, se o Kremlin estava quebrado? De onde vinha todo o dinheiro? Quem estava bancando a industrialização do país?

Então, após uma entrevista na embaixada para conseguir um visto, e dizendo (mentindo) que está a mando de Loyd George, Jones se depara com a arbitrariedade da ditadura vermelha já na entrevista com a comissária que lhe questiona, ela tenta manipulá-lo e deixa claro que ele não poderá deixar Moscou, visitar o interior do país está proibido (igual Cuba que não permite que se saia dos resorts do Caribe ou a Coreia do Norte que visita ao país, só com um agente do governo monitorando para mostrar só o que interessa). O jornalista então faz uma ligação para seu amigo Paul, que está em Moscou, durante a conversa ao telefone, seu amigo lhe diz que descobriu algo que poderia render uma ótima reportagem, mas a ligação é cortada, todas as chamadas à URSS tem escutas e quando alguém fala algo contra o regime, é banido.

Jones chega à Moscou e se hospeda no Metropol. Lá conhece um outro jornalista que parece trabalhar para o Partido Comunista, o ganhador do prêmio Pulitzer Walter Duranty. A toda hora no rádio a propaganda é incessante; “Este país não tinha uma indústria de tratores, agora temos! Não fabricava seus próprios tanques, agora fabrica! etc” (me lembrou o discurso despótico, seja de qual espectro for o líder, que sempre divide o país entre o “antes” e o “agora”, uma espécie de “ano zero”, ou frases populares e populistas como “nunca antes na História desse país”). Ele fala à recepcionista do hotel, esta mais parece uma policial, que tem permissão para ficar uma semana, mas ela alega que só pode ficar dois dias.

O filme mostra Duranty como um homossexual pervertido e corrupto, confesso que é caricata a imagem de uma forma proposital, e é claro, o filme desde o início toma seu partido em criticar a URSS, mas é baseado em eventos reais, como a denúncia do holodomor, que muitos ainda hoje fazem vista grossa ou não querem reconhecer, sem nenhuma instituição punir quando se falseia a História, igual fazem quando se nega o holocausto. Enfim, independente dos recursos usados pelo roteirista, muitos dos elementos da película são inspirados em relatos de sobreviventes dos campos de fome da Ucrânia. Eu mesmo me lembrei do meu primo de batismo, afilhado da minha mãe, que morava no final da rua e brincávamos quando éramos crianças, cujo bisavô deixou a Ucrânia fugindo da fome e foi viver na Alemanha nazista, lá, era chamado de Hans (seu real nome era Ivan) e quando começou a guerra veio ao Brasil. Nunca me esqueço de seus relatos da vida após a coletivização de seu país, e o filme é bem fiel às coisas que ouvi de sua boca.

Jones conhece uma bela moça que é jornalista também, Ada, quando saem para o quarto de hotel, ele pergunta quem era o homem que estava com ela. A mesma responde “Esse é o meu Big Brother” (agente russo que ficava seguindo eles) – talvez uma alusão ao próprio livro 1984 do Orwell. Ambos querem conversar sobre a tentativa de ir à Ucrânia para fazer uma reportagem, mas precisam aumentar o som da vitrola para poder falar disso, pois o agente russo fica ouvindo tudo o que eles falam atrás da porta. Recebem a notícia de que o amigo de Jones, Paul, foi morto. Dizem ser um “assalto”, mas desconfiam de que foi morto pelo governo, pois ele sabia de coisas que não eram para serem ditas. Outra passagem interessante, é quando ele menciona o nome do livro “A Máscara da Morte Rubra” de Edgard Allan Poe, fazendo uma menção à cor vermelha.

Naqueles idos de 1933, o orgulho da URSS eram os grãos. Os hotéis sempre falam que estão lotados para impedir que eles se hospedem, então Jones suborna sempre com libras para conseguir estada, que deveriam valer muito no país. Um diálogo que ressalto também é quando Ada fala que na História há ciclos, e agora seria a vez do mundo ver a real mudança através do comunismo. Ela crê no ideal, mesmo quando no filme começa a aparecer quem era realmente o Stalin, ela ainda nega, dizendo que o ideal é muito maior do que Stalin (parece os argumentos desse pessoal ainda hoje). Sendo assim, Jones fala: “como pode defender isso mesmo após ver seu amigo Paul com quatro tiros nas costas?”. Ao longo do filme, Ada começa a rever sua crença, embora algo dentro dela negue, a quantidade de arbitrariedades é tão grande ao ver a realidade do regime, que ela começa a se convencer aos poucos de que aquilo é uma insanidade (processo que também ocorreu com Orwell e tantos outros, apesar de alguns ainda insistirem). Jones acredita na profissão de jornalista, também é idealista, e quer mostrar a verdade para o mundo, então, mentindo ao comissário do partido ao qual está encarregado, consegue uma permissão para ir à Ucrânia (ele fala russo também), mas para a viagem terá um “guia” que o vigiará até enquanto dorme. Em um diálogo com o comissário político, o mesmo degustando um leitão, em uma mesa cheia de frutas, lagosta e vodca, diz que vivem no paraíso, o partido toma conta de tudo, os seus membros tem uma ótima comida, são servidos melhor do que a aristocracia nos tempos do czar e o povo pode ir ao cinema de graça. Desconfiado, Jones consegue dribrá-lo depois do mesmo cair no sono depois de tanta vodca e adentra a um outro vagão, lá, vê uma realidade muito diferente.



Um amontoado de pessoas com roupas de trapos o olha assustadas, ele tira uma maçã de seu embornal e um garoto diz “olha, comida!”. Jones deixa cair a maçã mordida ao solo e todos começam a se matar para pegá-la. Ele pergunta a um homem ao seu lado se ele não venderia seu casaco, pois quer se passar por camponês, e o mesmo diz que dinheiro ali não vale nada, que se ele tivesse um pedaço de pão para trocar seria muito melhor. O filme a partir daí, aborda uma mancha que os comunistas custam em reconhecer; o holodomor, a morte por inanição de milhões de ucranianos que sofreram com a coletivização forçada e foram condenados à fome e ao frio.

Quando ele desce do trem, se depara constantemente com pessoas mortas ao solo, as câmeras realçam a chuva de grãos caindo nos vagões, mas a população não pode chegar perto, quem se aproxima é executado. “Para onde estão enviando estes grãos” – ele pergunta, um velho lhe responde que é para Moscou. Hoje se sabe que Stalin estava exportando os grãos para o ocidente para montar a sua indústria bélica, deixando o povo famélico perecer em nome de suas pretensões militaristas. Gareth Jones foi o jornalista que revelou ao mundo o que havia por detrás do “paraíso soviético” utópico, o ocidente custou em acreditar, diversos intelectuais e artistas relutaram em aceitar, mas a História provou a verdade, muito embora eu ainda acho que só não denunciam com mais afinco devido o armamento atômico da Rússia e o fato de quase toda a Europa ser dependente do gás russo.

A Ucrânia era conhecida como a região da terra negra fértil que poderia alimentar o mundo, e veja só, foi o local onde houve mais fome! Em uma cena marcante, quando uma multidão disputava um pedaço de pão, ele escuta de uma ucraniana: “eles estão nos matando! Os homens vieram aqui e pensaram que podiam acabar com as leis naturais, deu nisso!” – Na hora me lembrei do “Tratado de Natureza Humana” do David Hume, e o quão é tirânico um regime que visa desrespeitá-lo. No mundo todo na época se dizia que a fome na URSS era rumor (igual os defensores cegos falam hoje), que as fazendas coletivas funcionavam, que os camponeses eram felizes. Mas a mesma personagem lhe diz espantada vendo toda aquela desgraça: “A União Soviética não é o paraíso dos trabalhadores! A sociedade igualitária é igual a de seu país capitalista, só que muito pior! Os que usufruem dos benefícios, dos serviços públicos do Estado, é só a minoria ligada ao partido. Stalin não é o homem que você pensa!”.

Talvez a cena ápice do filme é quando ele encontra crianças que estão comendo algum tipo de carne, e faminto, se serve dela também, mas ao perguntar de onde vem, ele descobre que estão comendo os cadáveres. Realmente isso foi verídico, o bisavô do meu amigo Ivan disse que havia relatos de canibalismo, além da História ter documentado e comprovado.

Passado um tempo ele volta à Inglaterra e não consegue deixar de reparar na abundância de comida e produtos nas prateleiras, isso mesmo eles passando ainda os efeitos da crise de 1929. Jones se torna um ostracizado, todos começam a fazer chacota dele e de sua “versão” (o que ele viu com os próprios olhos) da URSS. Perde seu emprego no jornal, e o pior, a situação se agrava depois que os EUA reconhecem o regime da URSS (isso foi antes da Guerra Fria, é óbvio, até mesmo depois da aliança na Segunda Guerra Mundial, o Stalin era chamado de Uncle Joe carinhosamente na América). O que salva Jones é que ele consegue convencer o magnata das comunicações William Randolph Hearst a publicar sua versão, daí por conta da legitimidade e prestígio de seu jornal, o mundo se convence do que ocorria para além de Moscou, embora o regime sempre continuou negando e até hoje tem gente que não quer reconhecer (parecido com o genocídio armênio que nunca se fala sobre). Quanto ao Pulitzer, Duranty, hoje é sabido que colaborou com o genocídio dos ucranianos pois sabia do que acontecia e nunca fez nada, seu prêmio nunca foi revogado. Jones morreu enquanto fazia uma reportagem na Mongólia, por agentes soviéticos. Cerca de 10 milhões de ucranianos morreram na coletivização (número maior que do holocausto).

O filme não retratou muito o Orwell mudando de ideia, mas deixa claro através do exemplo das mesas fartas com comissários do partido vestindo fraque e assistindo ao balé de Bolshoi com seus charutos enquanto o povo se matava por um pedaço de pão e cometia canibalismo para viver, de que na fazenda animal “alguns animais são mais iguais que outros”.

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