Por: David Vega
Martin
Scorsese nos presenteou com a obra prima “Taxi Driver” em 1976. O filme conta a
história de Travis (Robert De Niro), um ex-fuzileiro que tenta voltar à
normalidade da vida na América (recém saída da Guerra do Vietnã). Travis sofre
de insônia, então decide trabalhar de taxista para uma firma às madrugadas.
Logo no início do filme, o dono da frota de taxi lhe adverte que pela calada da
noite nos subúrbios da cidade grande ele corre risco devido à violência e as
zonas de perigo onde irá circular, mas mesmo assim, o jovem aceita o emprego.
Bem,
creio eu que a maioria de vocês conhece o filme por ser um clássico, então resolvi
comentar certas entrelinhas que a obra nos induz, puxando um pouco para a visão
sociológica e filosófica que muito pode ser a intencionalidade de Scorsese.
Logo
no início do filme, Travis agradece à chuva, pois segundo ele, nos dias
chuvosos todas as ruas são limpadas dos dejetos e toda a sujeira, da qual ele
compara com a “ralé” (em inglês o conceito de “mob”) que ali reside;
prostitutas, homossexuais, cafetões, degenerados e junkies de toda espécie. O
próprio personagem de De Niro tem um aspecto de um homem do interior, calça
botinas e anda com camisas xadrez, além do casaco militar de quando serviu aos
Marines. Explicita a visão de um conservador que se choca ao ver o dinamismo
dos guetos de uma cidade grande, e historicamente isso faz muito sentido, pois
indivíduos que saíram das relações vicinais, do comunal, da solidariedade
mecânica, ao se depararem com a complexidade de um grande centro urbano, tem
uma difícil assimilação. Não que não exista meretrícios no campo, mas a
decadência escancarada dos valores a ele sagrados, produz uma inquietação e
rejeição do meio urbano corrompido. Enganam-se os que acham que a revolta é
exclusiva aos que visam alterar a ordem. Muitas vezes a rebelião se dá aos que
visam manter a ordem e os valores morais questionados por uma modernidade que
rompe os laços invisíveis de um bom funcionamento orgânico do todo, assim como
em uma cidade pequena e pacata tudo funciona intuitivamente, na cidade grande,
mesmo através da lei e a impessoalidade que é tão cara a muitos, tais conexões
se perdem e muitas vezes isso é incompreensível aos que vêm de um lugar mais
conservador.
O
filme, por ser dos anos 1970, de acordo com as pautas mais atuais, pode parecer
preconceituoso quando coloca no mesmo balaio de traficantes e marginais os
negros e homossexuais, mas a caricatura que se faz de Travis indica que seu
senso de justiça, quando resolve comprar armas, e visivelmente vemos a sua
transformação, radicalizando-se, indica que mesmo os justiceiros que seguem na
lei de Talião (olho por olho, dente por dente) podem estar fora do ordenamento
legal assim como a ralé da qual tanto detesta e visa erradicar.
Outro
ponto que o filme nos mostra é a relação do outsider com os grupos
estabelecidos. Travis é alguém de fora que não compreende aquela sociedade que
o rodeia. Ele até gostaria de fazer parte como alguém normal, mas sua solidão o
impede. Desenvolve hábitos incomuns, como frequentar cinemas eróticos, e a
falta de noção que o permeia é tamanha, que ao conhecer uma garota e chama-la
para sair, a leva a uma dessas sessões achando que seria “normal”. A mesma logo
foge de lá e rompe qualquer relação com Travis. Se nota no personagem do
motorista de taxi uma ingenuidade, e toda ingenuidade pode ser considerada um
fator que leva à psicopatia, principalmente quando não se aceita parte da
natureza humana hobbesiana, do homini lúpus homini, na tentativa de
trazer uma suposta bondade incorruptível do seu humano ele rebela-se. Fica
claro na conversa que Travis tem com um motorista de taxi, seu colega mais
velho, quando pede um conselho, e a voz da experiência lhe diz para “deixar pra
lá”, “relaxar” e aceitar que as coisas são assim mesmo e continuar vivendo,
procurar se divertir na medida do possível. Porém Travis não consegue ver dessa
forma, e inicia uma rebelião interna contra a decadência dos guetos que o rodeia,
segundo ele, “são esgotos a céu aberto”, assim como fala ao candidato à
presidência que ele leva em uma corrida de taxi.
Quanto
a esse episódio do candidato à presidência, não saberia dizer se Travis é um “analfabeto”
político. Me parece preconceituoso não considerá-lo alguém crítico só por ter a
visão do senso comum, do cidadão médio que tem na fala preconceitos e não
entende a complexidade dos problemas, acreditando em soluções simplistas para
tal (o famoso espectador de telejornais como o do Datena). Diria que ele é um
reacionário, um “revolucionário ao contrário” que se insurge para a manutenção
da ordem. Na cena em que o candidato lhe pergunta o que ele mudaria na
sociedade, e afirma que “algo tem que ser feito para limpar a sociedade”,
arranca suspiros não só do político que fecha a expressão, mas do espectador
que vê nisso o germe do que foi o fascismo talvez. Assim como os totalitários
do passado, o discurso moralista sempre foi a base das tiranias, em nome do que
for, seja da liberdade, igualdade, democracia ou da lei e a ordem, tudo é
válido para a garantia destes. Travis se torna um apoiador do candidato
cegamente, sem nem mesmo ter muita noção das propostas e do discurso de retórica
do político, facilmente comprado pela sua militância contagiada pelas máximas
de efeito.
A
escolha de vários planos em vermelho no filme, das luzes de neon às manchas de
sangue em destaque durante as cenas violentas, não foi por acaso. O vermelho da
um sentido de revolta, por isso sempre esteve nas bandeiras revolucionárias,
também denota o submundo. Em vários planos do filme eu ao assistir a cidade
grande retratada, me lembrei do Largo do Arouche no centro de São Paulo, a
decadência de edifícios ocupados e invadidos, os letreiros de meretrícios e a
prostituição na rua a todo momento.
A
“evolução” de Travis é algo notório também. Sua feição muda drasticamente, e
isso devemos à bela atuação de Robert De Niro. Sua radicalização se dá quando
conhece a jovem Iris (Jodie Foster), uma prostituta menor de idade que lhe sensibiliza,
então decide fazer justiça com as próprias mãos para salvá-la.
Enfim,
o filme talvez seja o precursor dessa temática de “homens de bem”, pessoas
comuns que se rebelam contra o sistema. Outro clássico é o “Um Dia de Fúria”
com Michael Douglas. A famosa cena de Travis com o moicano imitando uma arma
com a mão cheia de sangue talvez faça uma referência à cultura punk ou
skinhead, muito em alta na época, principalmente através de outras obras do
cinema como “Laranja Mecânica” de Stanley Kubrick.
Poderíamos
fazer uma lista sem fim dos conceitos sociológicos que o filme implica, mas
como entretenimento é uma ótima peça de arte também. Fica a recomendação.
Nenhum comentário:
Postar um comentário