sexta-feira, 5 de março de 2021

O Triste Fim de Policarpo Quaresma e Os Bruzundangas - Lima Barreto

 Por: David Vega.


“As saúvas tomaram conta do Brasil!” – Quem nunca ouviu esta máxima metafórica, referindo-se quando uma caterva assume o poder em terras tupiniquins? Ela vem de uma passagem do livro magnum opus de Lima Barreto (1881 – 1922), “O Triste Fim de Policarpo Quaresma”, pai do pré-modernismo brasileiro.

Afonso Henriques de Lima Barreto, o “triste visionário” (palavras de Lilia Schwarcz), viveu nos subúrbios do Rio de Janeiro durante a transição do século XIX para o passado, filho de uma ex-escravizada e um madeireiro português, na minha opinião, é o maior nome da literatura nacional, equiparado, ou até em alguns casos, ganhando de Machado de Assis.

Apesar de pobre, conseguiu estudar na escola Politécnica ao lado dos filhos da elite carioca, local onde sofreu muito preconceito na época por ser mulato. A discriminação sofrida rendeu-lhe as melhores obras que retratam o Brasil daqueles tempos (e por que não dizer em alguns aspectos o atual?), do qual o desamparo aos negros excluídos nos morros é visível, em uma sociedade na qual a posição de classe tem característica da cor. Barreto chegou a ser secretário da famosa revista Fon-Fon, e denunciava toda a hipocrisia e autoritarismo de um país que imitava as Boulevard e Champs-Élysées parisienses no projeto de urbanização das grandes capitais, como no Rio dos primeiros anos da República, mas empurrava a “escória” indesejável para os guetos segregados que viriam a se tornar as favelas de hoje.

Defensor de uma escrita informal, onde a licença poética trazia termos, gírias e a forma coloquial popular, custou-lhe o impedimento à nomeação para a Academia de Letras, o que Lima critica em seus livros; a elite cultural apátrida rastaquera brasileira, que quer copiar tudo o que vem do estrangeiro e tem aversão ao nacional. Em “Os Bruzundangas”, publicado postumamente em 1922, ele cria um país fictício onde todos os absurdos que ali descreve são muito bem identificados como metáforas ao Brasil.

Monteiro Lobato foi talvez o único que acreditou no potencial de Lima Barreto. No ano de 1916 enviou uma nota à imprensa reconhecendo que o suburbano era um exímio romancista. Barreto chegou a publicar o livro “Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá” pela editora Revista do Brasil, de Lobato, precursor no mercado editorial, sendo que anteriormente, a maioria das publicações se dava nos folhetins ou a um alto preço das tiragens em Portugal.

O “Triste Fim de Policarpo Quaresma”, lançado no Jornal do Comércio, em 1911, traz uma crítica aos primeiros anos republicanos, sendo Lima Barreto um filho da transição de dois regimes, e talvez o “passado de glória” do império compusesse a sua imaginação, muito por causa da abolição, embora ele não fosse monarquista, inclusive chegou a colaborar com a revista ABC, de viés socialista.

Policarpo pode ser uma analogia à experiência que o próprio autor teria, sendo um idealista que fora encarcerado em um hospício; Barreto sofria de alcoolismo, e teve surtos psicóticos que o levou às internações, mais de uma vez.

O major Policarpo Quaresma, título que ganhou por uma indicação à Guarda Nacional, era um árduo patriota. Passava a maior parte de seu tempo tentando fazer reformas educacionais no país, apresentou um projeto de lei para alterar o idioma oficial do Brasil do português para o tupi, língua geral da maioria dos índios que aqui viviam. Trabalhava em uma repartição pública e ia portando um cocar, o que provocava chacotas por parte de seus companheiros.

Membro da alta sociedade, acreditava veemente no governo e no presidente (uma referência ao segundo presidente republicano, o militar Floriano Peixoto, que administrou com mãos de ferro). Os militares o usavam, era bom ter Policarpo por perto, pois sua áurea era quase que mística entre o povo que o rodeava, seu amor pelo Brasil, seu idealismo, era contagiante. Ele acreditava nas manifestações populares, tinha como melhor amigo Ricardo Coração dos Outros, quem ele chamava de “o trovador do subúrbio”, ensinava o velho major arranjos de violão e compunha versos que traduziam a beleza natural e espiritual do país. Em uma das aulas, Policarpo é observado na varanda de sua casa por homens comuns que o criticam, olham a estante de livros que ele tem na sala, e consideram aquilo “pedantismo”, indagando “Para que ter tantos livros se nem é escritor ou professor?”. No livro, Barreto descreve os autores que compõem as prateleiras do escritório de estudos; Von Martius (alemão que classificou os tipos de vegetações do Brasil), José Bonifácio (o patriarca da independência), os clássicos não só nacionais, mas universais, livros de filosofia e ciência, entre variados temas. Para o cidadão comum, é incompreensível a devoção ao saber de Policarpo.

O livro ganhou uma adaptação no cinema, em 1998, estrelado pelos atores Paulo José e Giulia Gam, produção esta que eu achei bem fiel ao livro! Tanto na obra, quanto no filme, Policarpo aparece de uma forma caricata, é uma espécie de “Don Quixote” tupiniquim. Há uma passagem em que convida um amigo e sua afilhada para jantar em sua casa, portando um terno verde-amarelo, lembrando as cores da bandeira, e pede à irmã que sirva guando, um feijão silvestre da mata atlântica, pois o feijão convencional seria estrangeiro.

   Barreto sempre orbitou entre o mundo dos excluídos, incluindo o da loucura, do qual pertenceu. Policarpo após se desentender com magistrados que trabalham na repartição pública, é internado em um hospício. Lá ele se torna uma espécie de líder dos demais loucos, que são retratados pelo autor como mais “lúcidos” do que os homens corrompidos que ocupam os cargos de importância do país e que pensam apenas em seus próprios benefícios. O médico do pavilhão acaba caindo na lábia de Policarpo, há uma cena no filme em que ele aponta para uma estante de livros no consultório e diz:

- Está vendo, doutor! O senhor tem este monte de livros, e não os leu!

E o médico responde.

- Você não é louco! É perigoso! É perigoso porque é inteligente!

Deixando o hospício, o personagem vai viver em um sítio, conhecido como “Sítio do Sossego”. Lá muda sua práxis. Começa a plantar milho, de sol a sol, com uma enxada, para assim provar para o mundo que o Brasil é o país da agricultura e irá alimentar o planeta (isso escrito em 1911!). Seu fiel amigo Felizardo, um caboclo humilde da terra brasileira, é um contraponto ao major, é preguiçoso, analfabeto, mas se encanta e contagia com o ânimo do major. Embora seja antagônico à sua figura, ele tem habilidade com a enxada, e ensina o patrão, que passa o dia abrindo roças junto do caboclo, coisa impensável para um homem da elite e de letras naqueles tempos.

Policarpo vê quem é realmente o povo do país que ele tanto ama. Um amontoado de aleijados e subnutridos que habitam casebres de adobe e sapê e não são donos da terra. Então ele começa a dar parte de sua propriedade para o povo plantar, o que os grandes proprietários não veem com bons olhos. O clima chega ao ponto em que os coronéis ateiam fogo nos alojamentos dos pobres. O livro traz o embate da terra e a reforma agrária, que permeia a História do nosso país desde a sua fundação.

Trazendo notícias da cidade, homens do governo vão ao sítio de Policarpo pedir por apoio a um levante durante o episódio da Revolta da Armada. O oficial do governo começa a falar dos problemas de interesses partidários, para um Policarpo que nem dá ouvidos e espalha veneno para combater as saúvas.

- Ou o Brasil acaba com as saúvas, ou as saúvas acabam com o Brasil! – Frase mais conhecida da história.

Entusiasmado e embebido de idealismo, Quaresma se alista na guerra do lado legalista. Mas vai se decepcionar com os reais motivos do conflito. No filme tem uma passagem em que ele fala com o presidente, mostrando um memorial para resolver o problema do analfabetismo e educação das crianças, “o futuro do país”, e o presidente boceja, dizendo “Você é um visionário Quaresma! Essa guerra é para resolver os meus problemas, eu já tenho problemas pessoais demais para me preocupar com isso!”.

Barreto faz uma dura crítica ao positivismo, doutrina que permeou os quartéis e a República daqueles anos. Não vou contar o final da trama, mas a meu ver é um livro primordial para se entender o Brasil e nossa literatura. Escrito há mais de cem anos e com uma linguagem atual, além do tema.

Outro livro de Lima Barreto que me marcou muito foi “Os Bruzundangas”. Um país fictício inspirado nas hipócritas elites do nosso. Nesta sociedade, os “intelectuais” eram assim considerados por usarem uma linguagem erudita, termos requintados e afrancesados ou em latim, mas no fundo não dizem nada! Os jovens incapacitados de se graduarem nas faculdades mais difíceis, se dirigem às universidades de locais mais distantes do país, para conseguirem o diploma.

Lembro-me de uma passagem em que ele narra uma entrevista de emprego para o cargo de embaixador. Para a vaga se apresentam dois jovens, um louro, e outro negro. O negro se mostra mais capacitado, fala vários idiomas, formado em uma instituição de renome, enquanto o eurodescendente é um “burro” (mas rico) e membro da elite. Então, o entrevistador dispensa o jovem de origem humilde e contrata o “louro de olhos azuis”, pois ele causaria uma “melhor impressão” do país no estrangeiro. A elite queria mostrar para o mundo que o povo de Bruzundangas era “bonito” (nos padrões convencionais), ele não precisava ter capacidade intelectual, bastava saber sorrir e dançar valsa.

Ele fala da titulação “doutor”, atribuída a qualquer um que habita algum cargo de importância ou elevado, mesmo este nunca pisado em uma instituição educacional. Menciona o caso do fictício Felixhimino Bem Karpatoso, um deputado que falava muito bem de assuntos de finanças, orçamentos, impostos diretos e indiretos e demais coisas “cabalísticas” da ciência de obter dinheiro para o Estado. O tesouro da Bruzundanga, quase sempre vazio, precisava destes “magos” financeiros, para não se esvaziar de todo. No livro ele escreve: “Se era médico, advogado, engenheiro ou professor, ninguém sabe, mas o tratavam de doutor”.

O livro é atualíssimo, parece termos os mesmos problemas desde há cem anos, fazendo desta metáfora algo dos dias de hoje. Lima Barreto, o visionário que nunca viveu de seus livros, morreu pobre e louco, excluído da sociedade que era racista demais para aceitar um mestiço como intelectual, suas obras denunciam todas as mazelas de uma sociedade totalmente autoritária e desigual, inaugurando o pré-modernismo que viria a culminar na Semana de Arte Moderna de São Paulo de 1922, ano de sua morte, onde o Antropofagismo encabeçado por Oswald de Andrade questionou a versão oficial da História do Brasil, apontando o dedo para a ferida e inspirando uma literatura mais popular, crítica e marginal, dando uma outra narrativa ao país, menos romântica, que muito deve a Lima Barreto e a sua produção.

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