quinta-feira, 4 de março de 2021

Francisco Marins e as grandes aventuras

Por: David Vega.


Eu sempre fui um grande fã de livros de aventuras, cresci lendo os clássicos como Huck Finn e Tom Sawyer, bem como os heróis das grandes façanhas que muito colaboraram para minha imaginação, durante as várias noites em claro, ainda lá no sítio, onde podia viver estas “personas” junto de meus companheiros fazendo trilhas, subindo em árvores e experimentando uma infância incomum para as crianças da geração tecnológica de hoje.

Todos conhecem estas figuras da literatura norte-americana, se não pelos livros, pelas inúmeras adaptações no cinema, mas eu sempre indago a mesma questão; “Quem seria o nosso Mark Twain brasileiro?”. Na ponta da língua, muitos diriam “Monteiro Lobato”, quem organizou nosso folclore, defendeu o petróleo e traduziu os grandes autores, criando a primeira editora brasileira, a “Companhia Editora Nacional”, e apesar de controverso, acusado de racismo, é inegável a sua importância. Porém, há um outro autor, mais contemporâneo, também do interior paulista, que eu colocaria nesta equiparação dos grandes escritores de aventuras, Francisco Marins.

Nascido em Pratânia, mas radicado em Botucatu, criou o “Clubinho Taquara-Póca”, que visa difundir a vida rural e cultural de um Brasil profundo. É membro titular da Academia Paulista de Letras e já ganhou o prêmio Jabuti. Dedicou-se à literatura infanto-juvenil e tem seu nome na Oxford Children´s Literature, sendo o único escritor brasileiro a figurar na famosa coleção europeia Delphi, que reúne os clássicos da literatura juvenil de todo o mundo. Faleceu em 2016, mas seu legado segue vivo na criatividade de cada menino e menina que conheceu suas histórias.

                Tive acesso a seus livros através da reedição de alguns números pela coleção Vaga-Lume, da Editora Ática, famosa nos anos 1970-80, que eu adquiri na década de 90, pouco antes de ir para o antigo ginásio. Marins mistura eventos da História nacional com personagens fictícios que atravessam acontecimentos e vivem fatos verídicos, nos ensinando sobre nosso passado de uma forma lúdica e divertida, não deixando a desejar a nenhum “Indiana Jones” hollywoodiano. Os personagens são marcantes, quem leu não se esquece de Tonico e Perova pelo interior do Mato-Grosso em busca de diamantes, capturados por índios e perseguidos por bandeirantes, a expedição aos Martírios ou de Didico e seu fiel cãozinho Tiguera, em uma Canudos seguidora de Antônio Conselheiro durante a guerra.

Em “A Aldeia Sagrada”, Marins descreve um sertão assolado pela seca. O jovem Didico, de 12 anos, sonha em seguir os passos de seu padrinho, Chico-Vira-Mundo, que não conseguia ficar por muito tempo em um só lugar. Trazia a descrição de terras além de sua aldeia, na Bahia de 1897. O garoto cresceu idealizando uma vasta realidade fora de seu mundinho. Depois que seu boi, Pomboca, foi morto e lhe roubaram a carne, Didico e Tiguera partem em uma aventura que os leva até Canudos, na trama, há várias referências ao clássico de Euclides da Cunha, “Os Sertões”.

 


            Antônio Conselheiro foi uma espécie de místico popular que percorria o sertão, levando consigo uma legião de seguidores famélicos, em um Brasil dos primeiros anos da República. Acusado de ser monarquista, por se opor à separação da igreja e do Estado, Conselheiro liderava o assentamento de Canudos, que chegou a ter 25 mil habitantes, tornou-se uma ameaça para o novo regime, então, o presidente Pudente de Morais, o primeiro civil a ocupar o cargo, enviou o exército altamente equipado para derrotar os rebeldes, arrasando a cidade e aniquilando quase todos, que bravamente resistiram até o fim, o evento foi considerado um massacre.

              Há uma passagem em que ele narra quando levaram o Bendegó, o maior meteorito já encontrado no Brasil, para o Museu Nacional do Rio de Janeiro (que sofreu um incêndio em 2018). Marins, como amante da vida rural e da cultura do Brasil profundo, a cada capítulo do livro, deixa um glossário com palavras que compõem a vida do sertanejo, muitas, estranhas aos garotos da cidade. Descreve objetos e paisagens pela ótica do menino que não se difere de outro qualquer, trazendo uma proximidade ao leitor jovem do personagem. Eu me identifiquei muito quando li, estava na 7ª série, e contribuiu para a compreensão deste evento da História nacional. Anos depois fui ler a obra de Euclides, e em várias passagens eu lembrava de “A Aldeia Sagrada”.

            Outra série de aventuras de Marins que me marou muito foi a protagonizada por Tonico e Perova, dois aventureiros que partem em busca de um diamante destinado ao imperador, no Brasil do século XIX. No livro, o célebre escritor menciona a expedição Langsdorff, encabeçada por um alemão naturalizado russo de mesmo nome, que percorreu mais de dezesseis mil quilômetros Brasil adentro, registrando aspectos de nossa fauna e flora, classificando plantas, animais e insetos. O famoso artista Aimé-Antoine Taunay, filho do criador da Academia Imperial de Belas Artes, morreu afogado no Rio Guaporé durante a expedição. Este é o pano de fundo da jornada dos dois heróis brasileiros.

 


O livro é a continuação de “A Serra dos Martírios”, onde Marins menciona que o menino Antoninho, personagem da trama, avista de uma canoa a montanha das duas cabeças - este viria a ser anos depois o grande bandeirante Antônio Pires de Campos, que partiu para os sertões com seu pai, como era de costume na época. Os aventureiros partem em busca do índio Bugre-do-Chapéu-de-Anta, no Amazonas. Muito desta epopéia me lembra o icônico explorador inglês Coronel Percy Harrison Fawcett, que sumiu no Mato-Grosso quando procurava por uma cidade perdida no meio da selva, depois de viver entre os Kalapalos. Inclusive cheguei a escrever minhas próprias histórias de aventuras baseando-me nestas figuras, que em breve irei publicar.

Os livros são ricamente ilustrados, e me pergunto se ainda irão compor a imaginação de nossos jovens no mundo atual, imersos em realidades virtuais em que o jogador tem que decapitar o oponente e o sangue espirra na tela do televisor. Estas aventuras são atemporais, e se não quisermos uma sociedade composta de pessoas individualistas, sem contato algum com a natureza, materialistas ao extremo, onde a futilidade reina como uma religião, é resgatando estas façanhas educativas para nossas crianças, antes que seja “tarde demais”.

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