Mais uma nivola (estilo próprio) do autor basco espanhol Miguel de Unamuno, junto de outros nomes de peso como Azorín, Valle Inclán, Maeztu, Pio Baroja e o próprio Ortega y Gasset, retrata a alma de uma Espanha dividida entre o progressismo modernizador e o tradicionalismo católico, metaforizando a história de um padre, São Manuel, em um pueblo da meseta, na região castelhana, onde mantém coesa e estimula a fé a todos os aldeãos, porém ele mesmo esvaído de sentido à vida, perdendo a fé, se vê em um dilema de continuar com o ofício e o drama existencial, aos olhos de Angelina, quem narra a história. Aqui faço um comentário da grande obra e meus adendos históricos e sociológicos.
domingo, 30 de janeiro de 2022
segunda-feira, 24 de janeiro de 2022
Sleepers - A Vingança Adormecida
Por: David Vega
Uma
sociedade de muros, que aqueles do lado de fora especulam como seria o lado
interno, bem como os “ilhados” uma vez dentro, se esquecem da vida lá fora. Se
a lógica do condomínio produz isso aos que se isolam, aqueles confinados em
reformatórios, presídios e sistemas corretivos de detenção do Estado, perdem
não só a capacidade do convívio em sociedade, bem como uma característica de
cooperação mínima necessária à vida em comunidade, produzindo o contrário ao
reeducando, ao invés de recuperá-lo.
Assisti
ao clássico dos anos 1990, “Sleepers – A Vingança Adormecida (1996)”, baseado
na obra homônima de Lorenzo Carcaterra (o garoto protagonista do filme). O
filme conta com um elenco de estrelas, Dustin Hoffman, Brad Pitt, Robert De
Niro, Kevin Bacon e na ala juvenil, o garoto prodígio Brad Renfro, que foi
icônico aos que cresceram nos 90, sobretudo com seus filmes tais quais Tom e
Huck, A Cura, O Cliente, O Aprendiz e tantos outros que fizeram dele mais um
“menino problemático” de Hollywood, igual inúmeros desde James Dean; quis o
destino que o garoto tivesse o fim semelhante ao de River Phoenix, ao ser
encontrado morto por overdose de heroína em seu apartamento em 2008. Nesse
ponto ao menos o Macaulay Culkin ainda está vivo! Bem, o filme retrata uma
geração perdida e sem perspectivas de pré-adolescentes que tem a infância
roubada após uma detenção.
A
história é ambientada no bairro de Hell´s Kitchen, periferia de Nova Iorque dos
anos 1966-67 composta em sua maioria de porto-riquenhos, italianos carcamanos,
irlandeses pobres e negros. Quatro amigos inseparáveis vivem o cotidiano de um
ambiente sem perspectiva, do qual as figuras mais ilustres pertencem à máfia.
Como nas palavras do personagem Gordo latino: “Você conhece esse bairro, é
dotado de extorsão e trambique!” - You never cheat a cheater (você nunca trapaceia um trapaceiro). O ídolo de todos ali seria Kenny Benny, um
homem conhecido por ser justiceiro, que vingou todos aqueles que o “passaram
para trás” desde pouca idade, fazendo valer a lei de Talião em um lócus onde a
justiça se faz através da vingança privada, na faca ou no cano do revólver, sem
existir um Estado de Direito que regula as relações dos moradores, substituído
pelo poder da igreja católica local e do padre idealista interpretado por
Robert De Niro.
Uma
passagem que me chamou a atenção, é quando o narrador, o próprio Carcaterra,
diz que acompanhava na TV (e poucos tinham aparelho de TV no bairro) os
protestos dos jovens ricos da classe alta querendo mudar o mundo; feministas
exigindo igualdade e mostrando os seios, enquanto nunca pisaram na periferia e lá,
suas mães apanhavam dos maridos. Pacifistas protestavam contra a guerra do
Vietnã e ele via muitos retornarem em caixões com a bandeira americana. Ou
liberais defendendo a legalização das drogas, mas no bairro de Hell´s Kitchen,
um intruso porto-riquenho se mudou e começou a vender heroína, até que o filho
de 12 anos de um italiano mafioso morreu de overdose e no dia seguinte, o
traficante amanheceu enforcado em um poste de luz para dar o exemplo aos demais
moradores. Nas palavras do narrador: “Para mim as mudanças que os almofadinhas
diziam defender na sociedade pouco importavam, pareciam viver em outro país!”.
Os
habitantes moravam em apartamentos apertados, de tijolos, muita gente
compartilhando um mesmo espaço trazia tensões diversas. Mas é verdade que a
molecada também se divertia, tomando banho nos hidrantes das ruas e aprontando
como todo garoto faz. Talvez fossem mais livres nesse sentido do que os meninos
dos bairros ricos. As cenas iniciais dos quatro amigos lembrou-me muito a minha
gangue de camaradas da infância quando cresci no interior. Na época que se
brincava na rua até tarde, as descobertas do amor, depois que passam a reparar
nas meninas de vestidinho e um encantamento do mundo que infelizmente logo
desapareceria, no caso dos meninos do filme, de uma forma muito trágica!
De
fato, a vida se mostra difícil desde antes de sua detenção. Há a cena do garoto
espancado pelo namorado da mãe no hospital, da menina que vai ao confessionário
dizer ao padre que está grávida e por ter tido vários parceiros não sabe quem é
o pai e da violência moral e física que sofre a mãe de Carcaterra pelo seu pai,
um imigrante italiano que mal fala inglês. A escola é um local apenas para se
cumprir tabela, pouco estão ligando para o conteúdo das aulas, pois para que estudar
se você pode trabalhar para o grande Benny, ganhar uma pistola e enriquecer em
uma semana o que um trabalhador honesto leva meses para conseguir?
Tudo viria mudar quando os quatro
amigos resolvem fazer uma traquinagem contra um vendedor de cachorro-quente.
Após roubarem seu carrinho, na perseguição, deixam o carrinho rolar escada
abaixo em uma estação de metrô e atingem a um pedestre, provocando praticamente
a sua morte. Chocados, pois não era para acabar assim, os quatro são julgados e
condenados, sentenciados por “comportamento violento” a cumprir pena em um
reformatório. Lembrei-me de quando era criança que sempre nos ameaçavam depois
de traquinagens com a temida FEBEM, hoje chamada “Fundação Casa”.
O
filme a partir de então toma um rumo totalmente diferente, muito mais sombrio
do que os problemas das famílias estruturadas do gueto de Nova Iorque.
Principalmente quando são submetidos à vigilância do líder dos guardas do
“presídio” reformatório de Wilkinson, o temível Nokes (Kevin Bacon). A forma com
que retratam os maus tratos e as brigas entre os internos lembra muito o filme
brasileiro “Pixote – A Lei do Mais Fraco”, que consagrou o saudoso cineasta
Hector Babenco, do qual o personagem de mesmo nome interpretado por Fernando
Ramos da Silva passa pelos abusos e violências de uma sociedade que jamais se
importou com o menor abandonado, sendo que a vida imita a arte, quando o ator,
que veio da pobreza, sem conseguir papéis na TV depois do filme, adentrou à
vida do crime e veio a falecer a tiros em um assalto, ganhando uma continuação
o filme anos depois contando a história de Fernando (que era da região de
Diadema na grande São Paulo).
A
situação dos quatro amigos se torna ainda mais trágica quando passam a ser
abusados sexualmente pelos guardas, uma violência inimaginável a qualquer
pessoa, pior a uma criança, nesse momento do filme senti um embrulho no
estômago que me impediu até de continuar comendo a pipoca que me acompanhava.
Embora não mostre o ato explícito, os gritos das crianças e o jogo de câmeras
passando a menção ao abuso é de deixar qualquer um revoltado! E nesse momento,
a gente fica torcendo para que os violadores sofram a punição pela lógica “olho
por olho, dente por dente”, pois é como se a justiça legalista não fosse o
suficiente, tendemos a dar razão à justiça com as próprias mãos, à vingança
privada, ao imaginar que poderia ser um filho seu, que seja um desconhecido! É
a sensação que fica ao espectador.
O
tratamento de Nokes e dos guardas os deixam mil vezes pior do que quando ali
entraram. Mostra que eram apenas garotos travessos que pregaram uma peça
levando a um acidente não proposital, e o sistema dos “reeducandos” os fez
revoltados, pois roubaram-lhes a infância, pelos estupros que sofreram
constantemente e a remoção de qualquer dignidade, esta, que começa com nosso
próprio corpo.
A
segunda metade do filme mostra os garotos já crescidos fora do sistema
prisional, dois deles adentraram ao mundo do crime e os outros dois trabalham
como advogados. Já dei spoilers demais, enfim, o título do filme já sugere
“vingança”, trabalhando a ideia de revanchismo pessoal com a de se punir os
violadores através da justiça legalista. Porém, adianto que em um local como
Hell´s Kitchen, a justiça também tem seus pormenores e intervenções, pois não
só advogados e polícias, mas os juízes também vem da comunidade, esta, que para
fazer valer a causa dos garotos que ali cresceram, é capaz de usar a
interpretação da lei para uma vingança que a nós, espectadores, produz um
sentimento de “dar o troco” aos monstros violadores de menores do sistema
prisional.
Também
nos faz lembrar de relance de outro filme clássico sobre prisões, “Um Sonho de
Liberdade” (Shawshank Redemption), mas o que choca mais é por se tratar de crianças, e assim como na
película estrelada por Tim Robbins e Morgan Freeman, é mencionada a obra
clássica da literatura “O Conde de Monte Cristo” de Alexandre Dumas, que aborda
o tratamento desumano de um prisioneiro, porém depois a sua doce vingança. No
Brasil principalmente, existem diversos “Wilkinson”, onde menores que deveriam
estar submetidos a um tratamento de reintegração ao convívio são desconstruídos
negativamente de uma forma que aprendem o ofício do crime, se antes não eram
como tais, passam a se tornar profissionais, o sistema é que retroalimenta os
grupos extraoficiais e o poder paralelo. Tendo para além dos muros
eletrificados, uma escola onde se ensina mais o que não se deve fazer do que o
contrário, em um país que o valor da vida é menor do que os bens protegidos com
seguranças armados de algum magnata, fazendo valer cada vez mais a lógica dos
muros, seja no presídio, ou nos condomínios daqueles que se isolam do mar de
miséria.
domingo, 23 de janeiro de 2022
Munique - No Limite da Guerra (2021)
Por: David Vega
Eu
sempre fui um grande admirador de ficções ambientadas em épocas que misturam
fatos verídicos da História. De certa forma tentei, modestamente, fazer o mesmo
na minha trilogia de aventura “As Aventuras de Donoso Bueno (2022)”. Além de
gostar de ler relatos, pois a História também se faz de experiências
individuais e biografias, a genialidade daqueles que constroem um enredo
envolvendo figuras e eventos que já conhecemos, faz da obra uma utilidade
dupla; a intersecção do entretenimento com o didático.
Pois
bem, ontem assisti a um filme que poderia se enquadrar em tal característica.
Produção da Netflix, “Munich - The Edge of War (2021)” – (Munique – No Limite
da Guerra), baseado do livro “Munique” de Robert Harris, tem uma trama de um
trio de amigos ainda em 1932 que cursavam juntos suas carreiras na Universidade
de Oxford, um dos rapazes é alemão, namorado de uma moça também alemã. Passado
os anos, os três se separaram devido a questões políticas, o jovem inglês Hugh
Legat é contra o emergente regime de Hitler, enquanto Paul Von Hartmann defende
cegamente o líder que segundo ele teria devolvido o orgulho aos alemães.
Hartmann não é um nazista de fato, é apenas um cidadão ludibriado e contagiado
pela onda populista de seu país, ele acredita que o regime embora seja hostil
aos judeus, não perseguirá aquela comunidade quando chegar ao poder, é um jovem
encantado com as promessas nacionalistas, idealista, que não consegue
compreender o perigo eminente de uma população quase que em sua totalidade
hipnotizada pelos discursos de um Führer (líder) salvador.
Anos
depois, após o trio de amigos se dissipar, Hugh Legat é secretário do então
primeiro ministro britânico Neville Chamberlain (Jeremy Irons) que aparece no
filme como um ancião cansado e metódico, um pacifista capaz de qualquer coisa
para se evitar uma nova guerra mundial. E de fato a História provou que
Chamberlain, ao contrário de Churchill, fez o possível se usando da diplomacia
para evitar o conflito, acontece que chega ser quase ingênuo, se tratando de
tentar negociar com ditadores com planos expansionistas, que não enxergam no
ordenamento legal ou na atividade política tradicional o meio para se atingir
os fins; são beligerantes e conquistadores operados pela lógica da guerra
total.
Hartmann
ao ver as medidas do regime nazista na prática após sua chegada ao poder,
abandona a esperança no novo regime e passa a ser um espião que trabalha junto
com outros subversivos que pretendem derrubar Hitler. Outra vez a ingenuidade
do idealista se mostra como um véu que distorce a realidade, ele tem a
esperança de que a Wehrmacht, caso uma guerra se avizinhe, não embarque na
irresponsável empreitada, justo as forças armadas alemãs que tinha oficiais
prussianos que nunca engoliram a derrota na Grande Guerra, chamando o Novembro
de 1918 de traição, e viam em Hitler a oportunidade de revanchismo. O filme
mostra como aqueles dotados de um otimismo cego não conseguem fazer uma leitura
da realidade, quando este sujeito pensa que o que seu coração gostaria tem uma
correspondência com o real, mesmo vendo que a experiência e averiguação o
mostra o contrário: ele tem o que a caixa de pandora nos legou e em alguns
casos pode ser a coisa mais perigosa; a esperança! Arriscando-se em uma
empreitada que representa mais a sua vontade pessoal do que a real pretensão do
povo alemão naquele momento.
Legat
é mencionado pelo seu colega alemão e isso chega ao conhecimento do MI6
(serviço secreto britânico) que o contrata para ir como tradutor de Chamberlain
no famoso encontro (A Conferência de Munique) que reuniu o primeiro ministro
britânico, o próprio Führer, o Duce (Mussolini) e o líder francês Daladier
(sucessor de Léon Blum). É aí que a ficção entra contando os bastidores
fantasiosos de um evento real. Os dois amigos teriam um documento que provaria
as reais intenções de Hitler para a Europa, que iria muito além de apenas
anexar o Sudetos na região da Tchecoslováquia, mas conquistar todo o
continente! O regime de Hitler reivindicava o que ele chamava de “espaço
vital”, as antigas regiões de populações de ascendência alemã que teriam se
perdido do Sacro Império Romano Germânico, o nacionalismo racial dos nazistas
defendia a recuperação desses territórios, e isso é mencionado inclusive no
Mein Kampf escrito ainda nos anos 1920. Em 1938 ocorreu o Anschluss, quando
anexaram a Áustria, depois se expandiram para a região tcheca, no episódio que
envolve a história do filme. A passividade Chamberlain beira quase a traição em
uma época que a diplomacia não tem mais funcionalidade e a única solução seria a
guerra para impedir o avanço incessante de um déspota megalomaníaco. Tal
episódio do encontro entre os líderes, sobretudo do acordo firmado entre
Chamberlain e Hitler, e a cena famosa do primeiro ministro britânico saindo do
avião e sendo recebido por uma multidão que mais parecia ter ganhado uma guerra
do que a evitado, hoje, é considerada vergonhosa para os britânicos.
Enfim,
o enredo mostra um pouco de suspense, com os dois espiões possivelmente
perseguidos pela SS e Gestapo, o encontro dos líderes, e o cenário de uma
Alemanha militarizada; a todo momento no filme mostra a população uniformizada
nas ruas de Munique, contrastando com as cenas de uma Londres mais pródiga,
moderna e diversa. O jogo de cena não é por acaso também, tem vários ângulos
propositais, como quando a comitiva volta à Inglaterra e decepcionado, Legat vê
o famoso discurso de Chamberlain, olhando para os céus, dando a alusão de que
um ano depois do acordo, quando Hitler o desrespeitou e invadiu a Polônia,
iniciando a Segunda Guerra Mundial, a Luftwaffe (Força Aérea Alemã) teve
investidas de ataques a Londres, barrados pelo heroísmo da RAF (Força Real
Aérea Britânica).
Embora
não seja o foco principal, a perseguição aos judeus é retratada de uma forma
sutil, mas o que chama a atenção no filme é uma lição que a História nos deu,
“dê a César o que é de César”, ou seja, trate igual quem merece um tratamento
igual, não adianta ser pacifista demais e se usar da diplomacia com líderes que
operam por outra lógica fora do campo democrático. Chamberlain renunciou e veio
a falecer pouco tempo depois do acordo, sendo sucedido por Winston Churchill, o
conservador que tomou as rédeas e fez o contrário do que seu predecessor
defendia, declarando guerra, naquele discurso famoso da BBC “Nós devemos enfrenta-los
nos mares, nos ares etc” (que virou a música Aces High da banda Iron Maiden),
atitude que mesmo custando milhares de vidas, salvou não só a Europa, mas o
mundo da ameaça nazista, provando que quando o momento exige, são necessárias
atitudes, e não palavras.
quinta-feira, 13 de janeiro de 2022
terça-feira, 11 de janeiro de 2022
sábado, 8 de janeiro de 2022
quarta-feira, 5 de janeiro de 2022
Errementari – O Ferreiro e o Diabo
Por: David Vega
Todo
país cristão, sobretudo de tradição católica, tem a figura dualista de santo e
demônio muito enraizada em sua cultura. Veja o nosso “O Auto da Compadecida” de
Ariano Suassuna e tantas lendas populares, como aquelas caipiras de onde cresci
no interior paulista, em que os matutos juravam um suposto encontro com o belzebu e sentido
o cheiro de enxofre. Pois bem, o comentário que farei hoje é sobre um filme da
santa terrinha, muito incomum, filme basco e falado na língua vascongada, dando
uma identidade à lenda do qual ele se baseia, justamente daquela região da
Espanha que embora é marcada por um independentismo, produziu os maiores
intelectuais nacionalistas do país: “Errementari – O Ferreiro e o Diabo”, produção
de 2017.
A
terra de Unamuno e de Maeztu, bem como dos antepassados do nosso patrono
Anchieta, sempre foi marcada pelo folclore registrado por outra grande figura
basca, Pio Baroja, escritor da geração de 1898. Todos conseguem se lembrar de
Garcia Lorca enquanto folclorista espanhol, mas sua produção diz respeito mais
à Andaluzia, quanto à cultura basca, foi Pio Baroja que escreveu inúmeras obras
registrando as lendas locais. Eu já li um livro dele sobre bruxaria (La Dama de
Urtubi), e os espanhóis adoram falar de “las brujas” (yo no creo em brujas,
pero que las hay, las hay – diz o dito popular) em um país que foi marcado pelo
tribunal da inquisição no passado, as anedotas populares giram sempre em torno
de demônios e blasfêmias que eram apontadas pela igreja católica.
A
película é dirigida por Paul Urkijo Alijo e retrata a paisagem verde da Euskadi
(País Vasco) que contrasta com a terra seca de uma Espanha quase que desértica
e agrícola. O filme conta a história de um oficial do governo que é enviado a
um pueblo (vilarejo) para investigar sobre um ferramenteiro que é suspeito de
guardar um ouro da época das guerras carlistas. A lenda diz que este ferreiro chegou
a enganar o diabo e era temido até pelo capiroto. A estética do filme lembra
muito outro de fantasia que foi muito famoso anos atrás, “O Labirinto do Fauno”
(2006) do aclamado Guillermo del Toro.
Ambientado
durante e após a primeira guerra carlista (1833-1840), o filme tem leves toques
históricos. O carlismo foi um movimento tradicionalista que se destacou sobretudo
na região de Navarra e do próprio País Basco que não reconhecia a linhagem
sucessória da rainha Isabel. O nome deriva do seu apoio à casa dos Habsburgos
dos Carlos, segundo eles, a real casa monárquica da Espanha, que sofreu reformas
liberais sobretudo desde a invasão de Napoleão após 1808. A guerra civil
carlista se deu entre os tradicionalistas com suas boinas icônicas defensores
do absolutismo, cujo lema era “Deus, pátria e rei” contra um exército
constitucional que defendia reformas liberais que inclusive promoviam medidas
secularistas, o que desagradava a igreja. No filme há a figura do padre da
aldeia, que em um sermão ataca o novo governo constitucional na época
encabeçando um movimento de oposição à igreja importando ideias liberais e
apoiados pela Inglaterra, França e Portugal. Um dos soldados carlistas, faz um
pacto com o diabo, e daí começa toda a trama.
É
metafórica essa associação ao diabo, em uma época que a modernização representava
o mal para uma igreja que visava atacar os parlamentaristas liberais, os protestantes,
ateus e posteriormente, os do movimento de Riego, que chegou a proclamar a
república (embora teve uma experiência breve, com os monarquistas restaurando a
casa real depois). Os carlistas praticamente desapareceram depois da Guerra
Civil Espanhola (1936-1939) diluídos nas facções que apoiavam o regime
franquista. O ferreiro, que em basco é Errementari, se torna um homem temido e
isolado na aldeia, sua figura é relacionada ao próprio demônio, mas uma menina órfã
da aldeia ousa desafiar os boatos populares e se aproxima dele. Bem, não vou
contar mais, seria spoiler. Vale a pena conferir.
Independente
de algumas analogias à política, que eu não consigo deixar de fazer, o filme é
um ótimo entretenimento, lembra muito inclusive a nossa cultura tradicional,
com fantasias que parecem do carnaval, aqueles diabos vermelhos, com tridente e
de rabo que via nos desfiles de rua da cidade que cresci no interior, a ideia
do diabo lançada por Dante Alighieri na literatura e reproduzimos até hoje.
Embora ambientado no século XIX, o filme tem uma aura medieval, e o vilarejo
deles com as casas de pedra me recorda muito o pueblo onde nasceu meu pai, em
Leon, que não é basco, mas tem elementos da cultura da Cantábrica na região
castelhana do noroeste da Espanha.
Essa
lenda basca foi registrada pelo antropólogo José Miguel de Barandiaran, que
também era sacerdote. Usa elementos da cultura popular como os garbanzos (grão de bico) igual ao feijão na brasileira e o sino, objeto típico da igreja. A produção é além de espanhola, francesa, que tem uma
parte de seu território reivindicado pelos bascos também, mostrando ao mundo o
particularismo de uma cultura pouco conhecida, cuja identidade forte não
precisa se dissociar do restante da Espanha e de toda Ibéria, aliás, uma
península em que sempre vigorou a unidade na diversidade, do qual as lendas tem
uma simbiose, inclusive no folclore transplantado às Américas que herdamos.
segunda-feira, 3 de janeiro de 2022
A Sombra de Stalin (Mr. Jones)
Por: David Vega
Recomendação de filme:
OBS: Contém Spoiler no texto.
O
problema do idealista é que ele através da lente viciada que vê o mundo,
enxerga só o que quer ver, mesmo se o fato desmente a sua premissa
anterior, após a realidade empírica mostrar o contrário, e quando temos
veículos que permitem suas versões dos “fatos” que visam confirmar
dogmaticamente negando a verdade, ou pior, instituições que promovem isso, falsear
a História sempre será apenas uma “outra versão”, mesmo quando é incansável o
relato de milhões e suas trágicas vivências sob algum regime totalitário.
Ora,
hoje ninguém ousa questionar do holocausto, por mais que historiadores mal
intencionados tentem desconstruir o que os portões de Auschwitz nos lembram,
mas a questão não se aplica quando falamos da URSS. Muitos motivos talvez
estejam por detrás da má vontade ou simplesmente negligência dos órgãos
educacionais e acadêmicos em reconhecer demais genocídios “quando não
interessam”. Colocar a culpa na guarda pretoriana da SS matando em nome de uma
raça superior é intencionalmente mais convincente do que o mesmo feito pelas
botas dos comissários vermelhos sob a justificativa de uma sociedade
igualitária e de um futuro feliz, uma perfeição inexistente, mas que ainda
cativa muitos, inclusive grandes intelectuais, pelo pretexto da remoção das
injustiças humanas. Se mesmo após a revolução científica ainda existem pessoas
com a necessidade de crer em algo para além do
mundo terreno, no campo político os missionários de plantão precisam
depositar as esperanças em manifestos e dogmas que proporcionam um alívio de consciência
igual ao fiel que se crê com a alma salva por seguir os passos do Senhor.
Começo
o texto relatando isto, pois é o que sempre me pareceu ao ver grandes intelectuais
jogarem tudo ralo abaixo quando se comportam feito crianças mimadas que
acreditam nos heróis com super poderes fantásticos, alguns realmente assim o
fazem por ingenuidade, outros por mau caratismo mesmo. Assisti ontem a um filme
que explicita muito bem essa introdução. “Mr. Jones” ou “A Sombra de Stalin”,
filme de 2019, produção europeia, narra a história verídica de Gareth Jones, um
jornalista galês (daí faz jus ao nome) que foi quem denunciou os crimes
stalinistas enquanto o mundo ainda era seduzido pela promessa do paraíso
utópico da União Soviética, sobretudo quando tais ideias começam a ganhar
muitos adeptos após a Crise de 1929.
O
filme começa com um escritor em sua fazenda fazendo uma metáfora do que na
distante Rússia aconteceu comparando com animais, a cena inicial é de alguns
porcos comendo lavagem. Não preciso nem dizer quem é este suposto escritor, não
é? Sim! Ele mesmo! Eric Blair, mais conhecido como George Orwell. Ele narra seu
mais famoso livro, Animal Farm (A Revolução dos Bichos) em paralelo à trajetória
de Jones. O jovem jornalista está em uma mesa da edição de seu jornal quando é
ridicularizado pelos gordos, grisalhos e velhos envoltos em uma fumaça de charuto,
quando afirma que após entrevistar Hitler, recém chegado ao poder em 1933, o
mesmo nitidamente tem planos de invadir outros países da Europa, ele conversou
com o próprio Goebbels que confessou-lhe que o incêndio do Reichstag ajudou
Hitler chegar à chancelaria e concentrar poderes em suas mãos. Jones tenta
alertar os veículos de imprensa ingleses de que uma nova Grande Guerra se
avizinhava, mas ninguém o leva a sério.
Depois
de fracassar em divulgar a ameaça nazista, ele recebe outra missão, ir
para a União Soviética e tentar uma entrevista com Stalin. As coisas não vão
bem após a Crise de 1929, e ele se pergunta como que a Rússia mostra ao mundo
que está se tornando uma grande potência, se o Kremlin estava quebrado? De onde
vinha todo o dinheiro? Quem estava bancando a industrialização do país?
Então,
após uma entrevista na embaixada para conseguir um visto, e dizendo (mentindo)
que está a mando de Loyd George, Jones se depara com a arbitrariedade da
ditadura vermelha já na entrevista com a comissária que lhe questiona, ela
tenta manipulá-lo e deixa claro que ele não poderá deixar Moscou, visitar o
interior do país está proibido (igual Cuba que não permite que se saia dos
resorts do Caribe ou a Coreia do Norte que visita ao país, só com um agente do
governo monitorando para mostrar só o que interessa). O jornalista então faz
uma ligação para seu amigo Paul, que está em Moscou, durante a conversa ao
telefone, seu amigo lhe diz que descobriu algo que poderia render uma ótima
reportagem, mas a ligação é cortada, todas as chamadas à URSS tem escutas e
quando alguém fala algo contra o regime, é banido.
Jones
chega à Moscou e se hospeda no Metropol. Lá conhece um outro jornalista que
parece trabalhar para o Partido Comunista, o ganhador do prêmio Pulitzer Walter
Duranty. A toda hora no rádio a propaganda é incessante; “Este país não tinha
uma indústria de tratores, agora temos! Não fabricava seus próprios tanques,
agora fabrica! etc” (me lembrou o discurso despótico, seja de qual espectro for
o líder, que sempre divide o país entre o “antes” e o “agora”, uma espécie de “ano
zero”, ou frases populares e populistas como “nunca antes na História desse
país”). Ele fala à recepcionista do hotel, esta mais parece uma policial, que
tem permissão para ficar uma semana, mas ela alega que só pode ficar dois dias.
O
filme mostra Duranty como um homossexual pervertido e corrupto, confesso que é
caricata a imagem de uma forma proposital, e é claro, o filme desde o início
toma seu partido em criticar a URSS, mas é baseado em eventos reais, como a
denúncia do holodomor, que muitos ainda hoje fazem vista grossa ou não querem
reconhecer, sem nenhuma instituição punir quando se falseia a História, igual
fazem quando se nega o holocausto. Enfim, independente dos recursos usados pelo
roteirista, muitos dos elementos da película são inspirados em relatos de
sobreviventes dos campos de fome da Ucrânia. Eu mesmo me lembrei do meu primo
de batismo, afilhado da minha mãe, que morava no final da rua e brincávamos
quando éramos crianças, cujo bisavô deixou a Ucrânia fugindo da fome e foi
viver na Alemanha nazista, lá, era chamado de Hans (seu real nome era Ivan) e
quando começou a guerra veio ao Brasil. Nunca me esqueço de seus relatos da
vida após a coletivização de seu país, e o filme é bem fiel às coisas que ouvi
de sua boca.
Jones
conhece uma bela moça que é jornalista também, Ada, quando saem para o quarto
de hotel, ele pergunta quem era o homem que estava com ela. A mesma responde “Esse
é o meu Big Brother” (agente russo que ficava seguindo eles) – talvez uma
alusão ao próprio livro 1984 do Orwell. Ambos querem conversar sobre a
tentativa de ir à Ucrânia para fazer uma reportagem, mas precisam aumentar o
som da vitrola para poder falar disso, pois o agente russo fica ouvindo tudo o
que eles falam atrás da porta. Recebem a notícia de que o amigo de Jones, Paul,
foi morto. Dizem ser um “assalto”, mas desconfiam de que foi morto pelo
governo, pois ele sabia de coisas que não eram para serem ditas. Outra passagem
interessante, é quando ele menciona o nome do livro “A Máscara da Morte Rubra”
de Edgard Allan Poe, fazendo uma menção à cor vermelha.
Naqueles
idos de 1933, o orgulho da URSS eram os grãos. Os hotéis sempre falam que estão
lotados para impedir que eles se hospedem, então Jones suborna sempre com
libras para conseguir estada, que deveriam valer muito no país. Um diálogo que
ressalto também é quando Ada fala que na História há ciclos, e agora seria a
vez do mundo ver a real mudança através do comunismo. Ela crê no ideal, mesmo
quando no filme começa a aparecer quem era realmente o Stalin, ela ainda nega,
dizendo que o ideal é muito maior do que Stalin (parece os argumentos desse
pessoal ainda hoje). Sendo assim, Jones fala: “como pode defender isso mesmo após ver
seu amigo Paul com quatro tiros nas costas?”. Ao longo do filme, Ada começa a
rever sua crença, embora algo dentro dela negue, a quantidade de arbitrariedades
é tão grande ao ver a realidade do regime, que ela começa a se convencer aos
poucos de que aquilo é uma insanidade (processo que também ocorreu com Orwell e
tantos outros, apesar de alguns ainda insistirem). Jones acredita na profissão
de jornalista, também é idealista, e quer mostrar a verdade para o mundo,
então, mentindo ao comissário do partido ao qual está encarregado, consegue uma
permissão para ir à Ucrânia (ele fala russo também), mas para a viagem terá um “guia”
que o vigiará até enquanto dorme. Em um diálogo com o comissário político, o
mesmo degustando um leitão, em uma mesa cheia de frutas, lagosta e vodca, diz
que vivem no paraíso, o partido toma conta de tudo, os seus membros tem uma ótima
comida, são servidos melhor do que a aristocracia nos tempos do czar e o povo
pode ir ao cinema de graça. Desconfiado, Jones consegue dribrá-lo depois do
mesmo cair no sono depois de tanta vodca e adentra a um outro vagão, lá, vê uma
realidade muito diferente.
Um
amontoado de pessoas com roupas de trapos o olha assustadas, ele tira uma maçã de seu embornal e um garoto diz “olha, comida!”. Jones deixa cair a maçã mordida
ao solo e todos começam a se matar para pegá-la. Ele pergunta a um homem ao seu
lado se ele não venderia seu casaco, pois quer se passar por camponês, e o
mesmo diz que dinheiro ali não vale nada, que se ele tivesse um pedaço de pão
para trocar seria muito melhor. O filme a partir daí, aborda uma mancha que os
comunistas custam em reconhecer; o holodomor, a morte por inanição de milhões
de ucranianos que sofreram com a coletivização forçada e foram condenados à fome
e ao frio.
Quando
ele desce do trem, se depara constantemente com pessoas mortas ao solo, as
câmeras realçam a chuva de grãos caindo nos vagões, mas a população não pode
chegar perto, quem se aproxima é executado. “Para onde estão enviando estes
grãos” – ele pergunta, um velho lhe responde que é para Moscou. Hoje se sabe
que Stalin estava exportando os grãos para o ocidente para montar a sua
indústria bélica, deixando o povo famélico perecer em nome de suas pretensões militaristas.
Gareth Jones foi o jornalista que revelou ao mundo o que havia por detrás do “paraíso
soviético” utópico, o ocidente custou em acreditar, diversos intelectuais e
artistas relutaram em aceitar, mas a História provou a verdade, muito embora eu
ainda acho que só não denunciam com mais afinco devido o armamento atômico da Rússia
e o fato de quase toda a Europa ser dependente do gás russo.
A
Ucrânia era conhecida como a região da terra negra fértil que poderia alimentar
o mundo, e veja só, foi o local onde houve mais fome! Em uma cena marcante,
quando uma multidão disputava um pedaço de pão, ele escuta de uma ucraniana: “eles
estão nos matando! Os homens vieram aqui e pensaram que podiam acabar com as
leis naturais, deu nisso!” – Na hora me lembrei do “Tratado de Natureza Humana”
do David Hume, e o quão é tirânico um regime que visa desrespeitá-lo. No mundo
todo na época se dizia que a fome na URSS era rumor (igual os defensores cegos
falam hoje), que as fazendas coletivas funcionavam, que os camponeses eram
felizes. Mas a mesma personagem lhe diz espantada vendo toda aquela desgraça: “A
União Soviética não é o paraíso dos trabalhadores! A sociedade igualitária é
igual a de seu país capitalista, só que muito pior! Os que usufruem dos
benefícios, dos serviços públicos do Estado, é só a minoria ligada ao partido.
Stalin não é o homem que você pensa!”.
Talvez
a cena ápice do filme é quando ele encontra crianças que estão comendo algum tipo
de carne, e faminto, se serve dela também, mas ao perguntar de onde vem, ele
descobre que estão comendo os cadáveres. Realmente isso foi verídico, o bisavô
do meu amigo Ivan disse que havia relatos de canibalismo, além da História ter
documentado e comprovado.
Passado
um tempo ele volta à Inglaterra e não consegue deixar de reparar na abundância
de comida e produtos nas prateleiras, isso mesmo eles passando ainda os efeitos
da crise de 1929. Jones se torna um ostracizado, todos começam a fazer chacota
dele e de sua “versão” (o que ele viu com os próprios olhos) da URSS. Perde seu
emprego no jornal, e o pior, a situação se agrava depois que os EUA reconhecem o
regime da URSS (isso foi antes da Guerra Fria, é óbvio, até mesmo depois da
aliança na Segunda Guerra Mundial, o Stalin era chamado de Uncle Joe
carinhosamente na América). O que salva Jones é que ele consegue convencer o magnata
das comunicações William Randolph Hearst a publicar sua versão, daí por conta
da legitimidade e prestígio de seu jornal, o mundo se convence do que ocorria para
além de Moscou, embora o regime sempre continuou negando e até hoje tem gente
que não quer reconhecer (parecido com o genocídio armênio que nunca se fala
sobre). Quanto ao Pulitzer, Duranty, hoje é sabido que colaborou com o genocídio dos ucranianos
pois sabia do que acontecia e nunca fez nada, seu prêmio nunca foi revogado.
Jones morreu enquanto fazia uma reportagem na Mongólia, por agentes soviéticos.
Cerca de 10 milhões de ucranianos morreram na coletivização (número maior que
do holocausto).
O
filme não retratou muito o Orwell mudando de ideia, mas deixa claro através do
exemplo das mesas fartas com comissários do partido vestindo fraque e assistindo
ao balé de Bolshoi com seus charutos enquanto o povo se matava por um pedaço de
pão e cometia canibalismo para viver, de que na fazenda animal “alguns animais
são mais iguais que outros”.
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