sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Nada de Novo no Front (Erich Maria Remarque) e Tempestades de Aço (Ernst Jünger)

Por: David Vega.



Após um longo período de paz, mesmo com as disputas entre Inglaterra, França, Bélgica e Alemanha no domínio da África e da Ásia, no final do século XIX e a sua influência na industrialização de países periféricos, como os da América do Sul (o Brasil seguiu na linha britânica e o Chile, bem como o Paraguai, até hoje possuem grande influência prussiana), a Alemanha havia se unificado há pouco, com Bismarck, e se encontrava no seu “Segundo Reich” (o nazismo foi o terceiro), rivalizando a Grã-Bretanha na hegemonia dos mares, tendo uma frota considerável, apesar de ser um país cuja única saída para o mar se dá pela estreita faixa do rio Reno, em comparação ao Reino Unido, uma ilha, nação marítima desde a Idade do Bronze.

Depois do assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro do trono da Áustria-Hungria por um radical sérvio, a tensão entre germânicos e eslavos aumentou, tendo a Sérvia o apoio da Rússia e das democracias ocidentais (vale lembrar que o Czar Nicolau II era primo do Rei George da Inglaterra) e a Áustria era aliada da Alemanha. Então, em 1914, os alemães invadiram a Bélgica rumo à França, dando início à Primeira Guerra Mundial, quebrando esse longo período de paz. Os dois blocos se armaram, a Tríplice Entente e a Tríplice Aliança, envolvendo até mesmo o oriente, como o império otomano (Turquia).

A guerra de trincheiras mudou o paradigma da estratégia militar, antes disso, na Guerra de Secessão americana o próprio Ulysses S. Grant já dizia que o futuro da guerra não seria no campo, mas nas trincheiras. A vida nestes buracos era terrível. Condições insalubres, gases venenosos, ratos comendo cadáveres e inundações que causavam gangrenas no tempo de inverno. O conflito durou até 1918, e depois, inúmeros livros foram lançados, com relatos de ex-combatentes. Talvez os mais populares sejam “Nada de Novo no Front” de Eric Maria Remarque e “Tempestades de Aço” de Ernst Jünger, ambos alemães, mas com uma visão diferente do evento.

Remarque puxa mais para o lado pacifista, humanista do sofrimento do soldado, e Jünger é mais patriótico (embora tenha passagens em seu livro terríveis, que podem ser usadas para causa anti-bélica). Quando eu li o “Nada de Novo no Front” estava na sétima série, achei um exemplar da Editora Abril amarelado na biblioteca da velha escola do bairro, depois achei uma fita VHS na locadora perto de casa de uma adaptação cinematográfica de 1979, com Richard Thomas e Ernest Borgnine, só depois de assistir inúmeras vezes, até decorar as falas, fui saber que havia outra versão, preto e branca, dos anos 1930, mas ainda hoje prefiro a versão mais recente.

O livro de Jünger eu só fui achar a versão em inglês, foi lançada no Brasil uma pequena tiragem em 2017 pela extinta Cosac & Naify, mas já está esgotada. A que tenho é da Penguim Readers, de uma coleção dos clássicos estrangeiros.

    Eu gosto muito dos personagens de Remarque; Paul Baumer, o jovem sonhador que vive metido em desenhos e poemas, é influenciado por seu professor nacionalista a se alistar com seus colegas de classe. Toda a passagem do treinamento militar, pelo cabo Himmelstoss, o “terror de Klosterber”, que recebe uma pregação de peça dos garotos (como vingança à sua rigidez na instrução) antes de partirem para o front, é realmente envolvente. Logo que desembarcam do trem há um choque de realidade, que golpeia todo o romantismo da guerra, ao verem os feridos desembarcando em macas. Lá conhecem Kaczynski, um ancião veterano que representa uma figura paterna para Paul e sua turma.

Os relatos das condições insalubres, da violência dos ataques e contra-ataques, inspiram até hoje os filmes de guerra. O livro possui devaneios do protagonista que relativiza seu papel de “assassino”, Paul ao mesmo tempo que é um jovem amante das artes, da literatura, torna-se um brutal soldado cuja atitude é matar; no livro há uma passagem em que ele esfaqueia um francês escondido em uma cratera de morteiro, e ali filosofa de que se não fosse a guerra, seriam irmãos, na passagem humanista anti-guerra mais famosa da literatura.

Possuidor de uma sensibilidade retratada através das situações constrangedoras e delirantes, Remarque prioriza pôr o dedo na ferida para materializar com suas palavras toda a imbecilidade da guerra. Isso fica claro quando ele fala em relação ao estado de nervos dos soldados do front, sobre os soldados mortos na terra de ninguém, sobre o sentimento de não-pertencimento quando os soldados voltam à vida civil, a dificuldade de se encaixar em uma sociedade não beligerante onde homens convivem uns com os outros sem degolarem seus pescoços. Também metaforiza devaneios dos personagens, como uma passagem em que Kropp, um jovem praça raso, questiona o objetivo de tudo aquilo:

“No seu entender [de Kropp] uma declaração de guerra deve ser uma espécie de festa do povo, com entradas e músicas, como nas touradas. Depois os ministros e os generais dos dois países deveriam entrar na arena de calção de banho e, armados de cacetes, investiriam uns sobre os outros. O último que ficasse de pé seria o vencedor. Seria mais fácil e melhor que isto aqui, onde quem luta não são os verdadeiros interessados”. (p. 40).

Em contra partida a obra de Jünger mostra um soldado que crê na atividade bélica, como um “born warrior” (guerreiro nato, de nascença), em que a vida civil seria o verdadeiro martírio e sua razão de viver seria estar entre obuses e metralhadoras. Jünger juntou-se à Legião Estrangeira aos 19 anos e serviu na Grande Guerra até os 23. Os nazistas gostaram de seu livro e tentaram cooptar Jünger para suas fileiras do partido, mas o mesmo se recusou. Ele também escreveu uma distopia, “Heliópolis”. Um outro livro famoso de sua autoria é o que conta suas memórias na França ocupada dos anos 1940.



Não é por acaso que Ernst tem essa imponência. Sua vida é como um livro de aventuras, ele é a História viva. Faleceu aos 102 anos de idade, abrangeu o reich do Kaiser, a Revolução Alemã, a República de Weimar, o Terceiro Reich, depois da guerra viveu na Alemanha ocidental, e na sua última década, a Alemanha unificada, sendo um escritor e formador de opinião ativo em todas estas etapas da História de seu país.

    Ambos autores não adentram na questão histórica dos fatos que levaram ao conflito, apenas retratam a visão daqueles que nele estiveram. Se por um lado o livro “Tempestades de Aço”, ao glorificar o feito dos soldados, foi admirado pelos nazistas, o “Nada de Novo no Front” de Remarque, escrita em noites de insônia, com a desconstrução do viés romântico e heroico dos feitos de seus combatentes que sentiam a presença da morte, atolados na lama e em buracos que se tornaram as sepulturas de muitos soldados, foi perseguida. A obra foi tão crítica à guerra que durante os anos do nazismo os livros de Remarque foram queimados em praça pública. Inclusive sua irmã seria assassinada pelos oficiais da SS. Hoje o livro é uma ode ao pacifismo.

Tempestades de Aço é a obra de estreia de Ernst Jünger, o relato mistura ficção e anotações dos diários do autor. Considerado pelo premiado escritor francês André Gide como o mais belo livro do gênero, a obra perpassa toda a trajetória do autor no exército alemão, seus companheiros, as batalhas e os ferimentos aos quais um soldado precisa se submeter, contando sempre com a narrativa poética e envolvente de um dos grandes nomes da literatura alemã. A edição conta também com ilustrações selecionadas dos diários de guerra do autor. (segundo a sinopse da Cosac & Naify).

Vendo os jovens saírem das aulas na escola nos dias de hoje, felizes, piadistas, pregando anedotas, não imaginamos toda uma geração trocando cadernos e canetas por fuzis e granadas, em tempos que o reconhecimento e mérito se dava quando se tirava a vida de um semelhante, pela justificativa deste ser de uma outra nação que não fala seu idioma. Aqui não quero defender a ideia pacifista do mundo liberal ocidental, mas deixar registrado os dois livros mais importantes sobre o tema, em uma época que a guerra parecia ser o remédio amargo para a resolução de todos os problemas, mesmo nós ainda vivendo sob tensão, porém hoje temos outras formas de exalar esta violência, por mais que pareça mais trivial e menos gloriosa do que se conquistar a trincheira inimiga. 

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