sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Admirável Mundo Novo - (Aldous Huxley)

 Por: David Vega.

A obra de Orwell, “1984”, nunca sai de moda. Uma sociedade controlada por câmeras e vigilância de todos os seus cidadãos, em Oceania, país fictício onde o “Grande Irmão” (Big Brother) estava à frente de tudo, lá se tentaria apagar o passado, e reescrever a História e a língua, apontando traidores o tempo todo (muito disso foi baseado no stalinismo). Porém foi outro autor, anterior a Orwell, que teria feito uma distopia mais certeira quanto aos nossos dias atuais.

Aldous Huxley escreveu seu mais notório trabalho “Admirável Mundo Novo” em 1931. O livro conta sobre uma sociedade futurística em que as pessoas amam a sua servidão. Na trama, o doutor Foster encabeça um centro de reprodução humana; “Centro de Incubação e Condicionamento” em uma Londres do amanhã. O lema desta instituição é: “Comunidade, Identidade e Estabilidade”. Eles dividem o óvulo e chagam a produzir gêmeos em larga escala, um dos objetivos é a manipulação do período de maturação dos embriões. Se um cavalo fica maduro após 12 semanas, a infância do homem, que é mais longa, poderia ser reduzida. É a produção em série da indústria aplicada à biologia, a padronização de pessoas.

A história se passa em 632 d.F (Depois de Ford, substituíram “Deus” pelo dono da logomarca de veículos, seguidor de Taylor na produção em série). A saudação das pessoas é fazer um “T” com os braços, em referência aos carros Modelo T da Ford. Produzem seres humanos imunes ao carvão, à soda cáustica, ao petróleo e aos gases químicos, para atuarem melhor na indústria.

Na África, os embriões de negros produzem até o dobro de bebês que os dos europeus, mas seriam de baixa qualidade e intelecto (uma visão racista do autor). O segredo de tudo isso seria fazer as pessoas amarem a servidão, o segredo da virtude; amarmos o que somos obrigados a fazer, amarmos o destino social de que não podemos escapar.

O livro conta uma relação entre a assistente do Dr. Foster, Lenina e Bernard Marx (Huxley usa nomes de pensadores; Engels, Bakunin, até Rotchild), um indivíduo da casta superior que teria tido a introdução de álcool em sua formação e um defeito físico, embora fosse um Alfa Mais (a casta superior) parece-se mais com um Delta (a casta inferior). No processo de formação destas crianças, elas aprendem durante o sono, o que ele chama de hipnopedia. Tudo é moldado para fazê-las odiar as coisas que a natureza oferece de graça, o campo, a paisagem... Elas devem se ocupar mais com as coisas que têm preço, assim estimulando e aumentando o consumo. Se para ir ao campo elas precisam gastar com a passagem do transporte, essa atividade deveria ser defendida pela mídia única e exclusivamente para aumentar o lucro das empresas de ônibus, disfarçado pelo discurso hipócrita de se aproveitar a natureza, tão logo isso não desse mais lucro, haveriam de descontruir a ideia. Eles introduzem palavras sem explicação racional para inculcar as formas de comportamento, para que reproduzam sentenças sem entender o que dizem. As pessoas interiorizam e repetem milhares de vezes incansavelmente sem a compreensão de sua polissemia. Querem formar seres que julgam, desejam e decidem, constituídos por coisas sugeridas, mas são ELES, os que encabeçam o experimento, que sugerem essas coisas. É um Condicionamento do pensamento e da cosmovisão. Uma casta Alfa Mais produzida em tubos de ensaio dá as ordens à massa de Delta Menos e Ípsilons obedece.

Tanto Huxley quanto Orwell se inspiraram no livro “Nós”, do russo Iêvgueni Zamiátin. O condicionamento infantil e a narco-hipnose, são mais eficientes como instrumentos de governança do que as prisões. A família e a maternidade, não só eram abolidas, como proibidas. Citam os habitantes de Samoa, de Trobriand, que tinham a noção de ancestralidade, mas não do “pai”, a figura de “pai” e “mãe” seria abonável na sociedade “civilizada” londrina. O romantismo era visto como abjeto (o autor muito provavelmente faz uma menção à condenação da ideia de “amor burguês” pelos comunistas). O lema dessa nova sociedade seria: “cada um pertence a todos”, o indivíduo não existira, seria diluído em uma massa imperante coletivista. Os livros publicados antes da Era Fordista foram proibidos. Tentaram vencer a velhice pelos hormônios e transfusão de sangue jovem. Os velhos do passado passavam o tempo pensando, e nessa nova sociedade deveriam se rejuvenescer fisicamente para continuarem produzindo, o ócio fora removido. A significação da morte também foi superada, não seriam mais enterrados com lápides os mortos, deveriam continuar servindo mesmo depois de falecidos, então se cremavam todos e aproveitavam os gases que se soltavam no processo, para aprimorar a produção da indústria.

“Cada um trabalha para todos. Não podemos prescindir de ninguém” – Diziam.

            Reverencia delirantes em uníssono o “Orgião espadão, Ford e a alegria a rodo” na Cerimônia de Solidariedade, eles creem que todos são “felizes” e eliminaram o sofrimento entre os humanos pela razão, com essa sociedade padronizada de classes em que cada um é conformado com a sua função. Quando estão deprimidos, há a droga “soma” para que fiquem alienados, anestesiados e suportem aquela sociedade fria.

Bernard no fundo acha essa sociedade um absurdo, mas não pode exprimir a sua opinião, ele é avesso às multidões. “Prefiro ser eu mesmo” – diz ele. Ele não quer fazer parte de outra coisa, uma simples célula no corpo social. A meu ver é uma crítica ao positivismo e a ideia de função de cada “órgão da sociedade” no funcionamento do todo. O livro fica nesse impasse entre Bernard e Lenina, ele quer autonomia e ela crê no coletivismo. Durante a trama fica entre esse impasse na visão dos dois, que começam a desenvolver um sentimento mútuo, mesmo Lenina resistindo ao romantismo “bárbaro”. Huxley brinca com essa ideia da razão pura, daquilo que nos distancia da condição animal, como se ser “civilizado” fosse destruir qualquer resquício do mundo sensorial, sensível, dos sentimentos.

“Quando o indivíduo sente, a comunidade treme” – Diziam.

Bernard e Lenina vão à Reserva, no Novo México, local onde a população é considerada “selvagem”, pois não estaria no “progresso”, as crianças ainda nasciam lá, não eram feitas em laboratório, e isso era visto como bárbaro. Lenina fica horrorizado ao ver uma índia amamentando os filhos com o seio, atitude que seria selvagem – “Civilização é Esterilização” – Defendiam.

Embora soubessem ler, os anciãos do pueblo, Malpaís, tinham respostas mais categóricas. A leitura de Shakespeare é considerada imprópria, pois quem lê desenvolve sentimentos. Bernard se encanta com os selvagens e quer viver entre eles a “vida de verdade”. Para a civilização, a Reserva dos Selvagens, é um lugar que devido às condições climáticas e geológicas desfavoráveis, não vale a pena destinar recursos para “civiliza-los” (Como nossos guetos excluídos). Lenina e Bernard começam a resgatar um pouco de nossa condição de humanos sensíveis, influenciados pelos selvagens e seu “primitivismo”.

Linda, outra personagem, é vista com nojo pelos “civilizados” devido o fato de possuir aparência mais envelhecida (ninguém lá envelhece com os métodos que deixam a aparência sempre jovem), por ser mais gorda e por ser “mãe”. Um dia ela pertenceu à civilização, antes de ter ido parar em Malpaís (Reserva dos Selvagens).

Não vou contar o fim do livro, dar este spoiler, recomendo a leitura. Eu li uma edição lançada pela Folha de São Paulo, que adquiri em uma banca de jornal há uns dez anos. Huxley escreveu nos anos 60 um livro apontando quais previsões do “futuro” (trinta anos depois de lançar o livro) ele acertou, conhecido como “O Regresso ao Admirável Mundo Novo”. Muitos filmes foram inspirados nesta ideia de se louvar a razão imperante e proibir tudo que nos lembra nossa condição instintiva. Fica muito difícil dizer que apenas essa racionalidade venceu, pois o capitalismo usa nossos sentimentos para o próprio consumo, existe uma legião de psicólogos e antropólogos estudando a psique humana para se vender produtos que saciam os nossos desejos.  

O contraste entre as civilizações de “ontem” e do “futuro”, é uma das partes mais importantes do livro. E hoje amamos nossa condição de sobrepujados, nossa servidão pelo fato de termos entretenimento. Já vivemos no “Admirável Mundo Novo” desde o “Fim da Historia”, como aponta Francis Fukuyama. Mas o questionamento que deixo é, se conhecemos o domínio do mundo capitalista que se assemelha à distopia de Huxley, será que trocar pelo totalitarismo de Orwell, claramente associado ao mundo socialista, seria a solução?

Hoje vivemos tempos em que vendemos horas de trabalho por diversão em programas vazios da TV, e mesmo assim, também se tenta reescrever o passado, na intenção de produzir utopias inexistentes, estas, que produziram as maiores barbáries que já vimos. A moderação é o caminho, uma pena não haver espaço para o diálogo prudente hoje, em que os extremos falam mais alto.

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