quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

O Processo - Franz Kafka.

 Por: David Vega.



Josef K amanhece em seu quarto rodeado de homens que se dizem seus procuradores. Ele é acusado, mas não sabe o motivo. Ao longo da trama, vai tentando esclarecer sobre seu processo, mas ninguém parece ajuda-lo como deveria. Fica a percepção de que estas pessoas à sua volta sabem o motivo, mas não revelam a ele, apenas agem como etapas de um processo a qual ele é condenado. Com o tempo, o personagem passa a internalizar a situação, ele mesmo não consegue mais viver sem a ideia do processo, trona-se dependente de toda a situação, como o panóptico descrito por Foucault.

Ele tem que comparecer a uma audiência, mas não lhe informam o local e horário. Vive na pensão da senhora Grubach. Então se dirige a um prédio e lá há uma sala com pessoas sentadas em dois cantos diferentes. Dizem que chegou atrasado, mas ele se defendendo diz que jamais informaram o horário. Começa a se justificar diante de um suposto juiz e apenas as pessoas sentadas em um canto da sala o aplaudem. O livro retrata uma violação causada pela burocracia, em que as etapas do processo são mais relevantes que seu fim e motivo. Todo condenado deveria saber pelo que o acusam, mas no caso de Josef K, um simples funcionário de banco, é como se brincassem com ele. Kafka descreve que também há um público enxerido que quer vê-lo nesta jornada, como se fosse um reality show, no livro diversas vezes ele descreve pessoas comuns que cuidam da vida do acusado e se viciam nisso, até fazem apostas sobre o desfecho de seus passos, como se ele fosse uma celebridade, mas sofre com isso, apenas teria o direito de saber o porquê de tudo aquilo.

Há uma passagem que descreve o “espancador”, quando K após visitar um cartório com um juiz que diz ajudar-lhe, descobre que alguns acusados como ele, sem saberem o motivo, também apanham, o autor Franz Kafka vai exagerando cada vez mais para parecer um absurdo maior em cada desdobramento. Depois ele encontra um tio que vive no interior e diz que lá no campo ele estaria mais tranquilo, poderia repensar tudo, como se ele tivesse alguma culpa a confessar e todos esperassem isso, mas o próprio personagem não tem essa noção e jamais consegue deixar de pensar no processo, nem quando encontra uma bela moça, Leni, que inicia um caso. O livro joga com a ideia de “metamorfose”, outro título do autor, quando diz que por passar por essa coerção de um processo injusto, ele não é mais o mesmo, como se essa condição fosse o primordial para o público que quer ver ele se emaranhar mais ainda nas etapas, mas o próprio personagem, embora não queira, é o centro de tudo, e o público viciante despreza sua condição de humano, sobrepujando sua individualidade, apenas preocupado com as etapas de sua jornada, pensando no seu entretenimento e não no sofrimento de uma pessoa acusada, violada, por uma arbitrariedade que não se revela nunca, sempre oculta, mas que faz a máquina girar. Não é por acaso que após esse livro, surge o termo “Kafkiano” para designar alguma burocracia em excesso.

Josef K também não tem direito a um advogado de defesa. Há um capítulo que fala que seu processo não tem uma amplitude popular, não é aberto ao público, apesar que fica essa impressão para K. Contra o processo ele não pode se defender de uma forma legalista, pois as coisas são ditas no particular, pelas costas. Kafka chama a atenção para os funcionários do “baixo clero” que fazem parte da burocracia, menciona os advogados, muitos indiferentes com o processo em si, apenas cumprem as etapas e não possuem qualquer vínculo, indignação com o acusado (sobretudo quando este não sabe porque o condenam), eles lidam com parte do processo e não conhecem o todo, transparecendo o inumano; tirar a condição de indivíduo, é como roubar-lhe a vida e o mesmo continuar respirando.

Ainda assim, passando por essa situação, K deve trabalhar para o banco. O autor fala que as férias seriam bem-vindas, para uma tranquilidade do personagem, mas não se sabia quanto tempo ainda iria durar o processo. O fato de K ter que levar uma vida corriqueira, estando condenado dessa forma, para Kafka é uma espécie de tortura; você ser forçado a agir como se nada estivesse acontecendo, estando acusado e molestado sem saber o real motivo e quem do seu cotidiano sabe ou não de sua situação.

K considera encerrar o trabalho do seu advogado de defesa. Vai até a casa dele e encontra Leni e um comerciante. A princípio fica com ciúmes e pensa que eles são amantes, mas ao decorrer dos acontecimentos, percebe que o comerciante também é cliente do advogado. Os dois conversam, e o comerciante Block diz ter vários advogados, sobre ele cai um processo também. K parece optar sempre pela saída mais cômoda, e mesmo desprezando certo tipo de pessoas, ele confia sua história do processo a elas e se conforta com o que elas lhe dizem, mesmo sabendo que de nada adianta, que elas não podem resolver nada. O comerciante diz que seu processo não evolui, ele acredita que já leva uns cinco anos. Ele ia a todas as audiências, recolhia diferentes materiais (e diferentes petições) e acompanhava de perto, até desanimar e cogitar a ideia de que isso não teria fim.

A petição, embora fosse erudita, tinha um conteúdo nulo. Franz Kafka faz outra crítica à burocracia, dizendo que algumas eram redigidas em latim, e nem o acusado, nem os advogados, quiçá os juízes, a compreendiam. Seria toda adornada com esses procedimentos, esvaziadas de sentido. Leni tem o mesmo tratamento caloroso com todos os clientes que procuram o advogado. K acaba por descobrir que ela tem atração por homens com processos. O comerciante Block sempre procura o advogado em horas inoportunas. K. consegue ser atendido por ele. Informa que vai cancelar seus serviços quanto ao processo e o mesmo tenta persuadi-lo dizendo que o caso dele é especial, que pode resolver o seu problema etc. O comerciante é chamado à sala e é humilhado pelo advogado, como se o caso de K fosse mais relevante. Block então cita um provérbio do mundo jurídico: “Para o suspeito, o movimento é melhor do que o repouso, pois aquele que repousa sempre pode estar, sem saber, no prato de uma balança e ser pesado junto com seus pecados”. Block se humilha diante do advogado, e mal sabe que seu processo nem se iniciou, embora acredite que ao longo dos cinco anos ele já está em andamento, na esperança que esteja em vias de encerramento. Este capítulo do livro é inacabado. Block fica com Leni e dá a entender que K segue adiante com seu processo.

O penúltimo capítulo é o “Na Catedral”. K precisa viajar a trabalho pelo banco e escolhe um colega italiano por ele ser amante da História da Arte (bem incomum para homens de negócios que se preocupam com lucros apenas). Kafka menciona em uma passagem que se resignar do processo é como aceitar a pena, a culpa, então os acusados como K, mesmo impotentes diante de tudo, dão andamento às suas fases a fim de seguirem com os procedimentos (e é assim que funciona a burocracia de Estado).

K não entende tudo o que o italiano fala. Sabe-se que é um homem muito culto, apenas o diretor fala com ele de igual para igual, mas mesmo sem compreender seu discurso, K continua na conversa, embora saiba se comunicar com um italiano básico. Talvez esta seja uma metáfora ao Estado moderno, seus cidadãos entendem algumas prerrogativas, frações do “todo”, mas nunca o “quadro amplo”, embora saibam alguns de cor os seus direitos e artigos da Constituição, nunca compreenderão como alguém “de dentro”, que está imerso na máquina infra-jurídica. K é designado a acompanhar o italiano a uma visita à catedral, muito o estrangeiro tem a contribuir com seu conhecimento erudito, e K se virando em um italiano mal falado, seria como uma pessoa que tem vontade de ser culta, mas não consegue absorver o “espírito” da arte. De momento se desencontram, e ele se questiona se não ocorrera um mal entendido com o diretor quanto ao horário e a localização na catedral. Debaixo de uma chuva, desiste de encontrar o italiano. Há uma passagem que o autor questiona o motivo de dar gorjeta à igreja, do sacristão.

O sacerdote parece que ia fazer seu sermão, mas K estava sozinho na igreja, e ele se pergunta por que o sacristão faria uma missa apenas para ele, sendo que sua pessoa não representa toda a sociedade. Essa é uma passagem simbólica, como se tudo fosse voltado a ele e sua condenação. O religioso se aproxima de K e lhe diz que sabe que ele está passando por um processo. Os dois iniciam um diálogo em que coloca o personagem acusado sempre como um ingênuo sobre os desdobramentos do acusação; o padre pergunta se ele sabe como tudo irá acabar, o mesmo responde não saber, nem mesmo o sacerdote pode dar esta resposta. A lei deveria ser acessível a todos. O sacerdote usa a metáfora de que se você é proibido de entrar em um edifício, há um porteiro que controla a entrada, e isso pode provocar em ti uma vontade maior de quebrar as regras, até o mais baixo executor do sistema tem poder sobre você. Ao entrar neste suposto prédio, cada sala dos andares tem um porteiro que as guarda. O caminho da burocracia é imenso. A atitude do porteiro é como do micropoder, da vigilância horizontal, ele se sente poderoso na relação de poder que permite a ele controlar quem pode entrar. O fim dos serviços, ocorre com o fim da vida do homem. Executa ordens sem pensar, é apenas um fragmento do todo, nem compreende o macro, mas ainda assim é um servo fiel à sua função. O sacerdote é o capelão do presídio, o que diz muito também.

No capítulo final, dois homens partem para a casa de K e levam-no a uma cabana em uma pedreira. Tiram uma faca e a cravam no peito de K duas vezes. Kafka joga com a ideia de que ele talvez quisesse se suicidar, e na esperança de saber o final de seu processo, teme em querer que ele se inicie de novo, pois já não sabe mais viver sem ele. Se podia ser morto, era melhor do que se matar. O livro se encerra abruptamente em um capítulo curto, como se o autor quisesse terminar logo a história, não revela o propósito da condenação e muitos dos capítulos da obra são inacabados. Mas talvez seja esta a intenção de Kafka, pois a burocracia é ela esvaída de sentido. K morre com a punhalada, e antes de cair ao chão fica com a preocupação e que seu exemplo fosse uma vergonha que pudesse perpassar os tempos; a vergonha de sua existência e vida desgraçada.

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