Por: David Vega.
Josef K amanhece em seu quarto rodeado
de homens que se dizem seus procuradores. Ele é acusado, mas não sabe o motivo.
Ao longo da trama, vai tentando esclarecer sobre seu processo, mas ninguém
parece ajuda-lo como deveria. Fica a percepção de que estas pessoas à sua volta
sabem o motivo, mas não revelam a ele, apenas agem como etapas de um processo a
qual ele é condenado. Com o tempo, o personagem passa a internalizar a situação,
ele mesmo não consegue mais viver sem a ideia do processo, trona-se dependente
de toda a situação, como o panóptico descrito por Foucault.
Ele tem que
comparecer a uma audiência, mas não lhe informam o local e horário. Vive na pensão
da senhora Grubach. Então se dirige a um prédio e lá há uma sala com pessoas
sentadas em dois cantos diferentes. Dizem que chegou atrasado, mas ele se
defendendo diz que jamais informaram o horário. Começa a se justificar diante
de um suposto juiz e apenas as pessoas sentadas em um canto da sala o aplaudem.
O livro retrata uma violação causada pela burocracia, em que as etapas do
processo são mais relevantes que seu fim e motivo. Todo condenado deveria saber
pelo que o acusam, mas no caso de Josef K, um simples funcionário de banco, é
como se brincassem com ele. Kafka descreve que também há um público enxerido
que quer vê-lo nesta jornada, como se fosse um reality show, no livro diversas
vezes ele descreve pessoas comuns que cuidam da vida do acusado e se viciam
nisso, até fazem apostas sobre o desfecho de seus passos, como se ele fosse uma
celebridade, mas sofre com isso, apenas teria o direito de saber o porquê de
tudo aquilo.
Há uma passagem que
descreve o “espancador”, quando K após visitar um cartório com um juiz que diz
ajudar-lhe, descobre que alguns acusados como ele, sem saberem o motivo, também
apanham, o autor Franz Kafka vai exagerando cada vez mais para parecer um
absurdo maior em cada desdobramento. Depois ele encontra um tio que vive no interior
e diz que lá no campo ele estaria mais tranquilo, poderia repensar tudo, como
se ele tivesse alguma culpa a confessar e todos esperassem isso, mas o próprio
personagem não tem essa noção e jamais consegue deixar de pensar no processo,
nem quando encontra uma bela moça, Leni, que inicia um caso. O livro joga com a
ideia de “metamorfose”, outro título do autor, quando diz que por passar por
essa coerção de um processo injusto, ele não é mais o mesmo, como se essa
condição fosse o primordial para o público que quer ver ele se emaranhar mais
ainda nas etapas, mas o próprio personagem, embora não queira, é o centro de
tudo, e o público viciante despreza sua condição de humano, sobrepujando sua
individualidade, apenas preocupado com as etapas de sua jornada, pensando no
seu entretenimento e não no sofrimento de uma pessoa acusada, violada, por uma
arbitrariedade que não se revela nunca, sempre oculta, mas que faz a máquina
girar. Não é por acaso que após esse livro, surge o termo “Kafkiano” para
designar alguma burocracia em excesso.
Josef K também não
tem direito a um advogado de defesa. Há um capítulo que fala que seu processo
não tem uma amplitude popular, não é aberto ao público, apesar que fica essa
impressão para K. Contra o processo ele não pode se defender de uma forma
legalista, pois as coisas são ditas no particular, pelas costas. Kafka chama a
atenção para os funcionários do “baixo clero” que fazem parte da burocracia,
menciona os advogados, muitos indiferentes com o processo em si, apenas cumprem
as etapas e não possuem qualquer vínculo, indignação com o acusado (sobretudo
quando este não sabe porque o condenam), eles lidam com parte do processo e não
conhecem o todo, transparecendo o inumano; tirar a condição de indivíduo, é
como roubar-lhe a vida e o mesmo continuar respirando.
Ainda assim, passando
por essa situação, K deve trabalhar para o banco. O autor fala que as férias
seriam bem-vindas, para uma tranquilidade do personagem, mas não se sabia
quanto tempo ainda iria durar o processo. O fato de K ter que levar uma vida
corriqueira, estando condenado dessa forma, para Kafka é uma espécie de
tortura; você ser forçado a agir como se nada estivesse acontecendo, estando
acusado e molestado sem saber o real motivo e quem do seu cotidiano sabe ou não
de sua situação.
K considera encerrar
o trabalho do seu advogado de defesa. Vai até a casa dele e encontra Leni e um
comerciante. A princípio fica com ciúmes e pensa que eles são amantes, mas ao
decorrer dos acontecimentos, percebe que o comerciante também é cliente do
advogado. Os dois conversam, e o comerciante Block diz ter vários advogados,
sobre ele cai um processo também. K parece optar sempre pela saída mais cômoda,
e mesmo desprezando certo tipo de pessoas, ele confia sua história do processo
a elas e se conforta com o que elas lhe dizem, mesmo sabendo que de nada
adianta, que elas não podem resolver nada. O comerciante diz que seu processo
não evolui, ele acredita que já leva uns cinco anos. Ele ia a todas as
audiências, recolhia diferentes materiais (e diferentes petições) e acompanhava
de perto, até desanimar e cogitar a ideia de que isso não teria fim.
A petição, embora
fosse erudita, tinha um conteúdo nulo. Franz Kafka faz outra crítica à
burocracia, dizendo que algumas eram redigidas em latim, e nem o acusado, nem
os advogados, quiçá os juízes, a compreendiam. Seria toda adornada com esses
procedimentos, esvaziadas de sentido. Leni tem o mesmo tratamento caloroso com
todos os clientes que procuram o advogado. K acaba por descobrir que ela tem
atração por homens com processos. O comerciante Block sempre procura o advogado
em horas inoportunas. K. consegue ser atendido por ele. Informa que vai
cancelar seus serviços quanto ao processo e o mesmo tenta persuadi-lo dizendo
que o caso dele é especial, que pode resolver o seu problema etc. O comerciante
é chamado à sala e é humilhado pelo advogado, como se o caso de K fosse mais
relevante. Block então cita um provérbio do mundo jurídico: “Para o suspeito, o
movimento é melhor do que o repouso, pois aquele que repousa sempre pode estar,
sem saber, no prato de uma balança e ser pesado junto com seus pecados”. Block
se humilha diante do advogado, e mal sabe que seu processo nem se iniciou,
embora acredite que ao longo dos cinco anos ele já está em andamento, na
esperança que esteja em vias de encerramento. Este capítulo do livro é
inacabado. Block fica com Leni e dá a entender que K segue adiante com seu
processo.
O penúltimo capítulo
é o “Na Catedral”. K precisa viajar a trabalho pelo banco e escolhe um colega italiano
por ele ser amante da História da Arte (bem incomum para homens de negócios que
se preocupam com lucros apenas). Kafka menciona em uma passagem que se resignar
do processo é como aceitar a pena, a culpa, então os acusados como K, mesmo
impotentes diante de tudo, dão andamento às suas fases a fim de seguirem com os
procedimentos (e é assim que funciona a burocracia de Estado).
K não entende tudo o
que o italiano fala. Sabe-se que é um homem muito culto, apenas o diretor fala
com ele de igual para igual, mas mesmo sem compreender seu discurso, K continua
na conversa, embora saiba se comunicar com um italiano básico. Talvez esta seja
uma metáfora ao Estado moderno, seus cidadãos entendem algumas prerrogativas,
frações do “todo”, mas nunca o “quadro amplo”, embora saibam alguns de cor os
seus direitos e artigos da Constituição, nunca compreenderão como alguém “de
dentro”, que está imerso na máquina infra-jurídica. K é designado a acompanhar
o italiano a uma visita à catedral, muito o estrangeiro tem a contribuir com
seu conhecimento erudito, e K se virando em um italiano mal falado, seria como
uma pessoa que tem vontade de ser culta, mas não consegue absorver o “espírito”
da arte. De momento se desencontram, e ele se questiona se não ocorrera um mal
entendido com o diretor quanto ao horário e a localização na catedral. Debaixo
de uma chuva, desiste de encontrar o italiano. Há uma passagem que o autor
questiona o motivo de dar gorjeta à igreja, do sacristão.
O sacerdote parece
que ia fazer seu sermão, mas K estava sozinho na igreja, e ele se pergunta por
que o sacristão faria uma missa apenas para ele, sendo que sua pessoa não
representa toda a sociedade. Essa é uma passagem simbólica, como se tudo fosse
voltado a ele e sua condenação. O religioso se aproxima de K e lhe diz que sabe
que ele está passando por um processo. Os dois iniciam um diálogo em que coloca
o personagem acusado sempre como um ingênuo sobre os desdobramentos do
acusação; o padre pergunta se ele sabe como tudo irá acabar, o mesmo responde
não saber, nem mesmo o sacerdote pode dar esta resposta. A lei deveria ser
acessível a todos. O sacerdote usa a metáfora de que se você é proibido de
entrar em um edifício, há um porteiro que controla a entrada, e isso pode
provocar em ti uma vontade maior de quebrar as regras, até o mais baixo
executor do sistema tem poder sobre você. Ao entrar neste suposto prédio, cada
sala dos andares tem um porteiro que as guarda. O caminho da burocracia é
imenso. A atitude do porteiro é como do micropoder, da vigilância horizontal,
ele se sente poderoso na relação de poder que permite a ele controlar quem pode
entrar. O fim dos serviços, ocorre com o fim da vida do homem. Executa ordens
sem pensar, é apenas um fragmento do todo, nem compreende o macro, mas ainda
assim é um servo fiel à sua função. O sacerdote é o capelão do presídio, o que
diz muito também.
No capítulo final,
dois homens partem para a casa de K e levam-no a uma cabana em uma pedreira.
Tiram uma faca e a cravam no peito de K duas vezes. Kafka joga com a ideia de
que ele talvez quisesse se suicidar, e na esperança de saber o final de seu
processo, teme em querer que ele se inicie de novo, pois já não sabe mais viver
sem ele. Se podia ser morto, era melhor do que se matar. O livro se encerra
abruptamente em um capítulo curto, como se o autor quisesse terminar logo a
história, não revela o propósito da condenação e muitos dos capítulos da obra
são inacabados. Mas talvez seja esta a intenção de Kafka, pois a burocracia é
ela esvaída de sentido. K morre com a punhalada, e antes de cair ao chão fica
com a preocupação e que seu exemplo fosse uma vergonha que pudesse perpassar os
tempos; a vergonha de sua existência e vida desgraçada.
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