Por: David Vega
Estou
lendo o brutal relato do grande Nicolae Sofran. De uns tempos pra cá, disse a
mim mesmo que iria me dedicar ao estudo da memória, não apenas a coletiva, mas
aos relatos pessoais, pois as sociedades são compostas de indivíduos e são as
experiências singulares que a meu ver importam mais do que a ideia geral ou
quando a priori se tenta fazer valer o conceito desprezando a averiguação
empírica. É a eterna discussão entre aqueles que acham que o direito ou
qualquer norma escrita que precede a aplicação na verdade corresponde ao real.
Daí, surgem bizarrices daqueles que de uma forma intencional ou ingênua,
preferem crer nas linhas de uma doutrina do que aprender com a História o que
ela representou enquanto implantada.
Não
vou entrar no mérito dos diferentes experimentos que uma certa ideologia aí
tentou fazer, em diferentes graus existe a também fracassada, embora ao menos
não violenta, tentativa de Robert Owen em New Harmony, porém também os casos
mais trágicos, como o sofrido por Sofran.
Sofran
era um jovem sonhador encantado com os ideais de liberdade numa Romênia ainda
não ocupada pelos soviéticos. Viu toda a movimentação da Guarde de Ferro de
Codreanu, e também o auge de escritores como Cioran. Porém tudo viria a desmoronar
quando em 1944, no final da guerra, os russos anexaram seu país. Nos anos 1950,
como ele narra no livro, ele presenciou uma mudança abrupta de Bucareste.
Tentou-se erradicar não só qualquer tradição, mas fizeram o que Orwell relata
em 1984, uma espécie de Novilíngua, tentando abolir o pronome possessivo; a
individualidade passou a ser punida pela lei. Possuir um sapato diferenciado
daquele oferecido pelos camaradas do partido seria uma aspiração “burguesa” dos
traidores que se recusavam à padronização imposta pelo poder central. O curioso
é que o relato não é novidade para as incansáveis histórias que lemos daqueles
que infelizmente viveram esses tempos, ou seja, todos experimentos baseados
nessas ideias fracassaram, gerando as inimagináveis ditaduras arbitrárias, e
quantos mais precisarão surgir para que se aprenda a lição? Até quando
continuarão pessoas relativizando e dizendo que “foi mal interpretado”. Quantos
mais precisarão perecer até se compreender que tudo aquilo forçado que visa a
alteração da natureza humana jamais poderá vingar?
Sofran
narra o que lhe ocorreu ainda quando era garoto, e no seu célebre “Fuga do
Inferno”, tão importante quanto o famoso Arquipélago Gulag, ele começa o livro
dizendo: “Para um ocidental que não passou por tamanha infâmia, é difícil ou
mesmo impossível acreditar nesta história, tal qual um saciado que não sente a
fome do faminto (...) Eis a diferença radical entre o Ocidente e nós”.
Criou-se
na Romênia de então o “programa de condução ao banheiro” para procedimentos
hediondos, e a substituição de termos comuns do idioma para evitar o “crime de
pensamento” (crime de intenção qualificado pelo Art. 267 do Codul Penal
romeno). Supriu-se a individualidade; fazendo uma substituição do calendário da
dieta, proibição e controle sobre a escrita e sobre relações sexuais).
Mantiveram a paranoia persecutória de uma ameaça constante, do ocidente que era
culpado por todos os fracassos da administração do governo. Aos “inimigos do
povo”, restou um sistema prisional (autoexplicativo) que visava modificar e
controlar o pensamento do infrator por meio do duplipensamento, levando sempre
à dialética. O que internamente ele e seus amigos diziam em tom de ironia (que
poderia custar-lhes a prisão) – “Se tudo está bem, por que então tudo está mal?
Resposta: É porque precisa haver a dialética, camarada!”. Sofran conta que um
amigo seu teve uma prisão de 5 anos a trabalhos forçados por contar uma piada
em público contra o regime. Ou de um professor que foi condenado à igual
“sorte” por se recusar a entregar para o governo discos de Beethoven e títulos
de sua biblioteca considerados “subversivos e imorais burgueses”.
Enquanto
pós 1945 a Europa do ocidente celebrava o fim da guerra e o Plano Marshall
visava reconstruí-la, os romenos ainda viviam sob o terror. Sofran narra
indignado as propagandas que os americanos e ingleses faziam de Stalin, claro,
isso antes da Guerra Fria, tecendo declarações de amor à Rússia enquanto eles
sofriam todo tipo de arbitrariedade. Na sua primeira prisão, ele narra que o
trabalhador era forçado a trabalhar “voluntariamente” e no país inteiro o
princípio era “tudo é nosso e ninguém tem nada” (o que chamavam de
“despropriedade”). A classe trabalhadora devia trabalhar, e não pensar. O
trabalhador era coagido fisicamente a trabalhar, ou então era “traidor”, quando
sob a mira de um Nagant apontado a ele, executava as piores tarefas, era então
considerado um “camarada que trabalhava para a glória do partido”.
Sofran
foi preso e solto em 1963, aos 22 anos, quando tenta a segunda fuga, volta a
ser preso e é torturado ainda mais, com a anistia em 1964, consegue chegar à
Alemanha e depois vem ao Brasil. Casou-se com uma brasileira e atualmente o
casal administra uma pousada em Vila Velha no Espírito Santo. Ele também foi taxista
no Rio de Janeiro. Hoje beira os 90 anos e presenteou ao mundo sua obra, que
sirva de lição. Em uma entrevista com o organizador do livro, ele, em tom de
humor, coisa que nunca perdeu, exibindo cicatrizes feitas por seus algozes, diz
que o Brasil é uma terra abençoada e conta algumas piadas sobre o “comunismo”:
“O que é um automóvel no
comunismo? É um carro onde passeia a classe operária através de seus
representantes!”.
“Qual é a diferença entre
Capitalismo e Socialismo? No capitalismo o homem é explorado pelo homem, no
Socialismo é o contrário!”.
“O que é a dialética
materialista? Resposta: é uma ciência que mostra o inverso do contrário!”.
Caiu
na gargalhada. A tortura nunca lhe roubou o humor!
Lembremos
que Ceaușescu foi um dos mais sanguinários ditadores que o mundo já viu, e seu
regime perdurou até 1989!
Recomendo
o livro do Sofran, para um pouco mais de humanidade e empatia em nossos
corações!
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